- Fala, doutor!
- Mas eu estou aqui para ouvir…
Na verdade, ele foi convidado pela sua esposa à consulta, uma sofisticada mulher que já se tratava comigo. Daí, tal apresentação. Foi quando, em meio à ausência de queixas, começou a contar sua vida:
- Hoje tenho dinheiro, sou bem-sucedido no meu negócio e querido por meus familiares.
- Mas, então, por que me procurar?
- É minha mulher que diz que eu tenho sido grosseiro com ela. Mas também tenho que trabalhar quatro noites seguidas por semana, sem dormir… e por isso estou meio cansado.
- Algum problema de saúde?
Esta pergunta era uma provocação, pois percebia seu orgulho e onipotência em descrever seus “sucessos”.
- Não, nenhum, estou ótimo!
A incapacidade ou medo que alguns têm de não perceber ou não revelar limitações é, sem dúvida, um sinal de desequilíbrio, como já dissemos anteriormente, o fato de haver ou não uma doença com lesão tecidual já instalada, de fácil diagnóstico por exames é irrelevante neste momento:
- E por que você não tira apenas umas férias?
- Porque é o olho do dono que engorda o gado. Nesse meu negócio, se a gente não está de olho, dá comichão na mão dos outros…
Cansaço também é uma queixa comum a nós, trabalhadores, mas, freqüentemente, quando proferimos esta palavra, ela vem recheada de uma variedade de outros sentimentos como depressão, movida pela desmotivação, incapacidade de exercer a plenitude de sua vocação. Motivando minhas perguntas seguintes:
- Mas o que você mais deseja na vida?
- Paz, muita paz, doutor! Mas é o que eu menos consigo.
- Mas o que você faz para conseguir isso?
- Trabalho muito, minha vida inteira, sem dar moleza para minha sombra…
- Mas é esse o seu problema!
- Qual?
- Você perdeu a sua sombra. Cresceu tanto que afinou como coqueiro e, por mais que bata sol, pouca sombra produz, sem refrescar ninguém…
- É… Aquilo que a gente quer é mais caro do que aquilo que a gente tem, me dizia um consultor de empresas, cliente meu…
- Mas o que você queria ser quando criança?
- Ah! cantor de ópera…
- E por que não foi atrás?
- Faltava “dindim”. A fila é grande, doutor…
- Quantos?
- Minha mãe, meus três irmãos, seis sobrinhos, duas tias mais velhas, minhas duas mulheres, mais aquela outra e meus seis filhos, pelos quais sou apaixonado, fora os agregados que…
- ..
- Aparecem pedindo ajuda, nós arrumamos serviço para eles e aí acabam virando gente da família…
- Mas você é novo, forte…
Fiz outra provocação para que ele tivesse um pouco de pena de si e se lançasse em sua defesa.
- É, mas não é muito esperto o aleijado quebrar suas muletas na cabeça dos seus inimigos…
- Aleijado?
- Já não posso nem mais comer minhas lingüicinhas quentes, meu caviar, meu torresminho e freqüentar aquela cozinha mexicana picante que logo passo mal, com vontade de vomitar… Me dá logo uma angústia, pressão no peito que me deixa só e até o sexo sai prejudicado…
- Sexo?
- É com nossas mulheres, é claro…
- A minha também?
Momento de descontração…
- Que isso doutor, não prejudico ninguém casado! Na sociedade, as irmãs me chamam de Mel… Mas só eu sei a perturbação que passo…
- Problemas graves, eu imagino!
- Que nada, isso eu tiro de letra, mas vai que a maçaneta da porta lá de casa não abre ou não acho meu chinelo quando preciso dele, grito com o primeiro que aparece…
- Também acredito que esteja claro para nós que, na hierarquia dos problemas humanos mais comuns, uma maçaneta emperrada e um chinelo perdido não constituem problema maior que dificuldades de ereção, isto é, uma reação superdimensionada, – provoquei.
- Minha vontade é de matar quem tirou aquilo do lugar, esbofeteio o primeiro que diz não ser culpado. Posso até ser violento, mas sou justo. Esse negócio de piedade pra mim é só meia justiça. É melhor não me encostar quando estou nervoso…
De repente, decidiu contemporizar, falava como se não ouvisse ou entendesse o que dizia:
- Mas, na verdade, sou um boêmio, gosto da noite, de um “uisquinho” e de uma boa cantoria. E o que a gente não faz quando a fala é mansa e o pedido é doce… Sou um sentimental! Todo mundo tem defeitos, agüento os dos outros, por que não podem agüentar os meus?
Foi então que decidi encerrar a consulta:
- Sua sensibilidade é extraordinária e sofre pelo poder das mínimas mudanças que, para você, são como tempestades num copo d’água. Seu senso de justiça supera a dor a que tenha de se submeter. Sua generosidade e benevolência superam o racional. Posso lhe dar um conselho?
- Claro, doutor!
- ..
- Menos o quê?
- Menos tudo.
- É… pode ser solução… Já estava querendo mesmo puxar o freio de mão.
Após a prescrição, sentia ainda que faltava algo a ser revelado quanto ao medicamento indicado, e logo ouviria embasbacado.
- Aliás, o senhor não me disse seu nome!
- Meus companheiros me chamam de Cidão.
- Profissão?
- Chefe da “boca” e do cassino aqui da região. Já vi que o doutor é sangue fino. É da paz… Continua suave que o senhor agora é meu protegido…
Poder: responsabilidade; desejo: de paz; medicamento: Nux vômica.