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A beijoca. Psorinum

–         Vou dar uma beijoca na sua boceta!…

Foi com esta frase desconcertante que algumas colegas de classe e eu fomos apresentados a uma colônia psiquiátrica no Rio de Janeiro, no primeiro ano da faculdade de medicina. A Colônia Juliano Moreira era o lugar: um conglomerado de malucos e alguns nem tão loucos assim. Indivíduos que ali viviam sob um cenário que lembrava, por fora, os filmes americanos de faroeste e, por dentro, as masmorras de castelos medievais.  Estávamos ali deliberadamente, dando nossos primeiros passos na relação médico-paciente, tema objeto de um trabalho que deveríamos entregar para a cadeira de biologia. Estávamos acompanhados por um profissional de fino trato, que era saudado por todos que entrecortavam nosso caminho e que exibia acenos de simpatia e de respeito aos moradores locais.

–         Avisa para o Xerife que estou indo para a ala C…

–         Xerife? – perguntei.

–         Sim. Assim são chamados os responsáveis pelos afazeres aqui. Na verdade, eles não são malucos de fato, mas ganharam o direito de ser pelas mãos da Justiça, que os julgavam criminosos ou perseguidos por crime. São pessoas temidas pelos demais, organizam um pouco a sujeira local de seus albergues e quem desrespeitá-los tá numa fria…

–         E vocês, não têm medo?

–         Doutor é respeitado por aqui. Não podem nem pensar no eletrochoque…

Lembro-me bem da inquietude daquela gente, entramos numa sala em que havia um ser todo sujo, deitado num lençol mais sujo ainda, que se coçava sem parar e, segundo o guia, não podia ver água pela frente.

–         Ai, me protege santíssimo, me protege santíssimo, me protege santíssimo, me protege…

Enquanto andava e coçava, balbuciava palavras repetidas de salvação, como se carregasse todas as culpas do mundo, sem falar naquelas feridas maltratadas com fissuras “sangrantes” e cheiro pútrido.

A insolência daquela primeira frase, a da beijoca, dirigida à minha colega, também repetida muitas vezes por aquele maluco beleza que nos perseguia com idéia fixa, marcou. O estresse vivido pelo grupo só não superou a obstinação daquele que, por muito tempo afastado de nossa “civilização”, já não sabia percorrer os caminhos, os rituais, os códigos para acessar o objeto do seu desejo. De forma infrutífera, suas tentativas de assédio só levavam a mais inquietações, risos e constrangimentos. Convivi com esse mistério por muitos anos, só o desvendando com minha dedicação ao estudo da homeopatia.

Percebi que desejos, fantasias, sonhos, prazeres, aversões e manias também são matérias médicas. Aquilo que Jung chamava de inconsciente pessoal e coletivo se manifestava naquele momento de forma intensa. O “eu” daquele sujeito era absolutamente consciente dos seus desejos que, certamente, eram compartilhados por mais alguns ali presentes, haja vista a beleza da colega. Risos transformaram-se em acessos de tosse, constrangimentos em rubor, palpitação e inquietude. Via naquele momento desejo se transformando em sintoma pelo poder que a nossa cultura, os nossos códigos e a nossa hipocrisia infringiam sobre nós.

 

 

Poder: da verdade; desejo: ser quem eu sou; medicamento: Psorinum.

Mais próximos de Deus… Sulphur

  • Buá, buá, buá…
  • Não sei o que acontece com o bumbum dessas crianças, por mais que os limpe estão sempre sujos… Isso aqui mais parece um chiqueiro! E que fedor! Nossa Senhora, valei-me!

É isso mesmo o que você está pensando. Estamos numa escola-creche com criancinhas de um mês a dez anos de idade. Perguntei do que sofrem e, no meio da agitação e do desespero, veio-me uma frase de Eleonor Roosevelt: “Por não terem quase nada, as crianças precisam confiar mais na imaginação que na consciência”.

Esta é a chave para o sofrimento daqueles que, assim como muitos bebês, têm mais imaginação que consciência e que encontram na filosofia, na meditação, na excentricidade e na ruptura com o convencional um caminho para exercer a sua vocação. Com uma criatividade desmedida e pensamentos reentrantes, foi meu filho, na época com 10 anos, que acrescentou a resposta:

  • O problema com esses “caritchas” é que eles pensam em tantas coisas ao mesmo tempo que não conseguem entender… É como se, ao se lembrar da sua turma do colégio, começassem pelas roupas dos colegas, do tempo se estava frio ou quente… sem falar nas brincadeiras e sacanagens simplesmente…

O que os tocam são o mundo paralelo às realizações, seus valores são diferentes daqueles que a sociedade nos impõe como normais e adequados, tais como se vestir bem, comer direito, estudar para se formar, constituir família… Um resgate precoce do movimento hippie… Mas, lembrar-se de quê? O que aqueles bebês seriam capazes de ver que nós não somos, para estar em tamanha agitação?

  • Vai ver a sopinha do Luís, acho que está quente demais para aquele calorento. Misture com água fria que ele come e pára com a “melecação”… É um enjoado mesmo…

A memória é a faculdade mental mais traiçoeira que existe e, juntamente com a imaginação, é capaz de tudo, até de adoecer. Lembrar-se de algo pode evitar que coisas ruins se repitam, mas pode também fazer com que essas mesmas coisas não desapareçam, fazendo você refém dela, transformando fantasia em realidade. Será que aquelas pequenas criaturas sofriam pela lembrança de um mundo por nós esquecido? Um mundo forjado antes da concepção, comportando-se como um computador de baixíssima memória “RAM”, com pouquíssima capacidade de administrar o volume enorme de informações que consegue armazenar na “ROM”? Ou como um caldeirão (ROM) que precisa de uma pá (RAM) para fazer andar a mistura e não estragar ou desandar, as informações ali contidas? Será que a imaginação é uma memória antepassada (ROM) e o que chamamos de memória (RAM) é apenas um gerenciador de acontecimentos mais recentes?

  • A imaginação daquele garoto deixa os outros em polvorosa…
  • Como é que consegue inventar aquelas histórias?
  • Aquele cabra já nasceu esquisito.
  • Só tem cuidado com os “bichinhos” da aula de ciências… Mas só os maiores… Os insetos não quer ver nem de longe.

Trazendo talvez experiências passadas, chamavam de imaginação o que para aquele garoto era realidade.

Quando adolescente, uma vez, um mendigo bêbado, desses que adoram o confinamento, cheirando azedo e dizendo coisas horríveis só pra que você se afaste dele, abordou-me e protestou em tom enfático:

  • Cuidado com os abutres, pois dizem ser dos outros os corpos que eles transformam em carniças…

A princípio, sem entender nada, fiquei com essa frase por anos em minha mente, encontrando significado em diversos momentos de minha vida, em que os perversos se aproximavam travestidos de santos. Hoje, ao ver a mobilização que alguns grupos nas escolas e nas empresas fazem contra os estranhos, os diferentes, os esquisitos e o quanto esses me parecem inocentes, rejeitados por estarem invariavelmente, misturados à lama e atrasados, com seus uniformes rasgados penso nos ensinamentos bíblicos e tenho a certeza de que essas pessoas, com suas mentes creativas, estão mais próximas de Deus, e aconselho, como bem escreveram Robertson Davies e James Hillman:

“Cada um descobre seu mistério à custa de sua inocência.”

E continuam: “O tempo precisa ficar de lado, caso contrário, o antes determina o depois, acorrentando você a causas passadas sobre as quais é incapaz de ter alguma atuação”.

Conectar-se à vida é não desvalorizar as atividades do cotidiano em detrimento das intelectuais, metafóricas ou metafísicas, mas, sim, compartilhar com o outro seus temores, arrumar seu quarto, fazer compras no supermercado, encarar algumas filas, ir a alguns aniversários caretas e, quem sabe, até mesmo, cozinhar…

 

 

Poder: arrumação; desejo: redescobrir; medicamento: Sulphur.

Cebolão. Thuya occidentalis

–         Se eu fizer o que preciso, morro, mas se não fizer é a morte. Já não agüento mais estudar esta matéria, tenho prova amanhã e sinto como se não soubesse nada, não consigo nem pensar no assunto… O pior é que a prova é oral e, aí, começo a balbuciar as palavras, esqueço o assunto e parece que tudo começa a girar… O João está com a monografia pela metade, já escreveu mais de 20 vezes e seu orientador manda fazer de novo… Fomos reclamar da professora Maria José com a coordenação, pois é a quinta vez que ela dá a mesma aula. A coordenação diz que ela tem mestrado, doutorado e “pós-doc”. Vai ver que é por isso que só fala da mesma coisa… Tenho medo de reclamar muito e ficar marcado… Aí, o doutor já sabe, nunca mais me aprovam… Estou meio decepcionado, pensei que faculdade fosse outra coisa…

Esta jovem chegou até mim com uma aparência que dava dó. Arrastado por sua sombra, notava sua fragilidade pelo cuidado que assentava seu pé ao chão. O pensamento científico definitivamente não atende às individualidades. Montado para isolar poucas variáveis do fenômeno em observação é concêntrico e move-se numa espiral que afunda, asfixiando o observador. Envolve o objeto em camadas de conhecimento como se fosse uma cebola. Entra em conflito por restringir demais o fenômeno que, no ambiente natural, está em constante transformação e contato com o meio exterior. Esse reducionismo afasta as pessoas da realidade, fazendo-as perder a percepção da necessidade:

– Dr. tenho visto vultos, parece que me vejo fora do meu corpo.

Essa literalidade afastava este jovens de sua mente criativa antenada na multiplicidade de causas integradas à vida, diminui sua audição e sensibilidade, priorizando a agulha à costura, o raciocínio à imaginação, fazendo-os perder a visão:

–         A Joana diz que nem consegue dormir à noite, estuda todo dia até as 3h da manhã, quando lhe vem um soninho… É um xerox atrás do outro. Com a grana que o Matheus já gastou poderia ter comprado pelo menos uns dois livros por semestre, mas o que adiantaria? É o que dizem em aula que cai na prova e toda semana tem uma… Pelo menos temos um caderno legal, o da Marcinha tem tudo, até o “pum” do mestre ela anota… Tem gente que só estuda por ali e ainda vai melhor que ela nas provas… Coitada, dá pena ver o jeito dela na hora que vê suas notas. A mãe dela me falou noutro dia que agora isso virou um ritual, não consegue ter uma conversa comum com ela sem que pegue caneta e papel…

Os rituais esticam o tempo e, por isso, permitem melhor discernimento do que é dito e melhor avaliação de quem diz, mas refletem também dificuldade de compreensão, quando estranhos ao relacionamento comum, afinal, estava com sua mãe em uma conversa ordinária. São como preces ao solicitar ajuda de invisíveis. As provas também são rituais que testam nossa vocação, desafios que quando não superados, apesar de boa preparação, devem ser entendidos como sinais fechados, necessidade de mudança de rota. Destinos invisíveis podem se manifestar como fracassos visíveis.

–         Tem gente na turma fazendo promessa de subir as escadarias da igreja de Nossa Senhora da Penha, de joelhos, se conseguir se formar. É um tal de pedir para salvar a sua alma, que nem sei… “Verrugão” é o apelido do CDF da turma. Ele quis brigar comigo, noutro dia, porque eu havia me encostado nele para ver o que estava escrevendo na carteira… Acho que não precisava daquela cola, o cara só tira dez, mas era prova de farmaco e o mau não ri de si mesmo… O doutor acredita que o titular da cadeira deixou todo mundo em prova final, porque, no dia dos mestres, fizemos uma caricatura do sujeito de asas voando em direção ao céu, com a camisa do Mengão (o time dele, é claro!), recitando parábolas farmacológicas em grego, que saíam de sua boca como raios açoitando os seus alunos indefesos. Achei até uma homenagem legal pro tio. O pior é que ficou puto, pois o Fla perdeu naquela semana e quase foi pra segundona. O cara é fanático, parece que tem dupla personalidade…

O circo montado para o professor, através daquela caricatura, simboliza uma tentativa de união entre o mágico e o real, o professor e o aluno, respectivamente, a aproximação entre a convicção imperativa do domador e o medo angustiado da fera. A realidade da fera é que os alunos nada estavam entendendo sobre conceitos absolutamente inexplicáveis que, para eles, mais pareciam coelhos saindo de uma cartola.

–         Estudar, estudar, estudar!… Ler, ler, ler!… Aula, aula, mais aula!… Já não agüento mais! Isso não é vida…

A proliferação, repetição que aparece no físico como verruga, também se revela nos comportamentos fanáticos repetidos ao extremo, como nos slogans de torcidas organizadas ou propagandas vitoriosas. Albert Einstein disse uma vez que, quando se abre a mente para uma nova idéia, ela nunca mais fica do mesmo tamanho. As universidades, com sua vocação (desejo de crescimento), focam equivocadamente o físico, privilegiando a informação, em vez do metafísico – a imaginação. Vemos muito poucos mestres brincando, falando ou estimulando o absurdo, esquecendo-se de que imaginar sobre o que não se afere é ciência ousada. Einstein fala em mente não em cérebro e essa confusão parece ser a insensatez do corpo docente. O obtuso mestre na frágil escola, por fim, revelou a dicotomia entre mente e cérebro, expressa na punição exemplar da prova final, que pouco provou a não ser a incapacidade de lidar com a singularidade que agora era meu dever resgatar:

– Querida o cérebro – órgão físico – nutre-se de informação, armazena e escoa a produção, esta sim originada na imaginação, propriedade da mente, alimenta-se de “porcarias”, fortalecendo o corpo. Procure o louco, o incerto, o doce ao invés do salgado. As baladas, o desarrumado, drogas, sexo e rock in roll nem sempre fazem mal a saúde…

 

Poder: repetição; desejo: crescimento ordenado; medicamento: Thuya occidentalis.

Pesado. Sépia succus

  • “Defunto quando tem quem carrega faz peso…”
  • “Cuida deste que já tá na tábua da beirada…”

Estamos agora dentro de outra instituição milenar, quase um arquétipo das organizações e, por isso mesmo, difícil de explicar. Tudo pesa nessas instituições. Processos complicadíssimos, decisões que contrariam a sua missão, falta de comando ou de controle, mau humor do corpo de funcionários. Cheguei a ouvir certa vez:

  • “O hospital seria o melhor lugar do mundo se não houvesse pacientes…”

Refletindo o desejo de estar só, esta frase se contrapõe ao objetivo pelo qual foi criada, o de estar com o outro. Com a finalidade de diminuir o sofrimento alheio, utiliza o reducionismo como estratégia equivocada de atuação:

  • “… Não, eu estou falando do enfartado…”
  • “… Pensei que fosse da apendicite…”

O modelo único do diagnóstico reduz o sofrimento dos familiares atônitos e a percepção dos médicos pela complexidade dos doentes. A simplificação ilusória das causas autoriza o controle do comportamento pelas drogas.

  • Doutor, o paciente está vomitando!
  • Faz um antiemético nele. O que está esperando?
  • Aquele abdômen não está evoluindo bem, vou levar o paciente para a UTI.
  • Não sei o que houve, pois a cirurgia foi perfeita…

Estamos diante de um sistema não linear, no qual pequenos estímulos levam a enormes diferenças de respostas. Durante sua sobrevivência ao longo da história, essas empresas costumam carregar uma estabilidade que as melhores gestões empresariais, caracteristicamente lineares, não demonstram. Estas últimas são mais previsíveis e mais lucrativas, mas a menor falha pode não dar respostas e determinar a sua extinção, o que é impensável quando lidamos com vidas humanas. É como posicionar dominós em seqüência linear. Sabemos que, ao derrubar o primeiro, teremos sempre a mesma resposta ao final, a não ser que algum falhe por mau posicionamento ou por qualquer outra variação no ambiente ou no estímulo. Não há UTIs, by pass, que possam dar continuidade ao processo. Sairia muito caro e modificaria a lógica dos negócios: o lucro. Sistemas não lineares, os hospitais operam com inúmeras linhas de frente (front offices), caracterizados pela diversidade do atendimento com diferentes especialidades, visando à maior segurança, custam mais, pois o que está implícito é o desejo de sempre vencer. Vencer a morte ou a dor é um conceito que submete os profissionais que ali atuam.

  • Vocês viram o Carlos, agora ele está na diretoria. Internação era sinônimo de qualidade pra ele…

A perversa inadequação do tratamento é conseqüência da perversidade da cultura, que vitima também os profissionais de saúde. Acreditando em internações sem propósitos clínicos e na quantidade excessiva de exames e procedimentos solicitados sem racionalidade científica, atuam sem limitar a interferência alheia. Mas que cultura é essa? Em nosso “saber” ocidental, o sintoma é considerado algo ruim e o alívio passa por uma relação de troca com a tecnologia. Estamos vivendo a época em que a lógica é a dos sólidos, em que só a panacéia dos equipamentos são armaduras suficientes para derrotar os “inimigos naturais”: as doenças. O que é pior: a relação de afeto passa pelo presentear.

  • Doutor, não agüento mais essas dores de cabeça!
  • Fique tranqüila que faremos uns exames: tomografia, ressonância e um ultra-som de crânio para observar seus fluxos cerebrais…
  • Está bem, doutor – respondeu a paciente, mais calma.

Foi quando um estagiário que acompanhava o médico, já fora do quarto, perguntou:

  • O doutor gostaria que eu a examinasse?
  • Não é necessário, os exames vão responder as nossas perguntas, afinal, está na cara que se trata de um “petit, um peripaque”, uma histeria, melhor dizendo.

O fracasso das relações humanas estereotipadas na atitude paradoxal é o fracasso da imaginação que recorre aos modelos e aos rótulos para diagnosticar, classificar, compartimentalizar, afastar e, por fim, enterrar. A confiança só existe nos sólidos representados pelos exames que, de antemão, sabidamente nada revelariam, pois tratava-se de uma doença dinâmica, não lesional e, nem por isso, menor. Foi quando, aos gritos, ouvi um auditor da empresa cliente sair do setor de contas médicas dizendo:

  • Estão maquiando as contas. Oitenta mil reais de antibióticos que nunca foram usados! Roubam e se deixam roubar? Não é possível isso!…

A confusão das contas apresentadas era proporcional à dissimulação com que víamos exagerar a gravidade dos casos para vender a complexidade dos tratamentos, tornando-os diferentes, únicos e, por isso, essenciais àqueles que não eram capazes de ver e de conhecer. Ao investigar a sombra de seus movimentos, observávamos a necessidade de prestígio que manifestavam e seu comportamento isolacionista revelava a estratégia para se destacar.

Quando gostamos de alguém, ficamos cheios de fantasias, idéias e ansiedades. Não temos certezas, pois estas só nos distanciam. Postura soberba não permite a aproximação e o conhecimento do outro e o que não se conhece se teme, odeia-se e se quer destruir para vencer. Não mais capazes de ver o mundo afetivamente, só competitivamente, essa postura perpetuada pelo sucesso financeiro que costumam ter transforma-os em vítimas contaminadas pelo desamor e pela frieza. Não encontram o conforto que só o carinho pode dar e odeiam ser tocados. Desamor como daqueles que deixaram para trás filhos, irmãos, pais e parentes, pela incapacidade de cuidar de seus familiares, pelo fatalismo de ver a vida como uma arena romana. Mantêm uma relação interessante com o destino, confortam-se ao atribuir ao mesmo um caráter determinista, pois dessa forma não se obrigam a questionamentos.

 

 

Poder: dissimulação; desejo: vencer; medicamento: Sépia.

Excepcional ou patológico? Mercurius solubilis

  • “Atentado a bomba destrói uma quadra em Israel, matando várias pessoas”.
  • “Padres pedófilos são expulsos…”
  • “Guerra mata mais inocentes que soldados…”
  • “Narcotráfico impede prefeitura de construir em favelas…”

Foram manchetes de jornais como estas que me fizeram pensar naquilo que chama a atenção da gente: o excepcional, aquilo que excede, transborda e, por isso, é notado. Porém, hoje em dia, nem tudo que é estranho à nossa natureza é levado ao médico, como percebi em outras manchetes:

  • “Empresa do ano, pela segunda vez, responde na justiça por crime…”
  • “Estrela da música pop é envolvida com assédio a menores…”
  • “Empresário bem-sucedido é assassinado, junto com a esposa, pela filha e seu namorado…”

Retrocedi no tempo e imaginei essas pessoas antes da revelação dessas manchetes. Figuras de sucesso, excepcionais. Ao mesmo tempo, veio-me uma frase dos tempos da adolescência quando a saúde física me prometia tudo que era imaginado: cuidado com o que deseja, que você pode conseguir… Conseguir, vencer, conquistar e dominar são poderes comuns à nossa volta, quando usados em si mesmo, como vemos nos grandes atletas, são sinônimos de superação, mas, quando usados sobre o outro, transformam-se em pecado mortal, imperdoável.

Voltei-me aos meus atendimentos rotineiros. O próximo a entrar em meu consultório trajava um distinto uniforme que não conseguia esconder seu cheiro ou mesmo limitar seus movimentos desengonçados:

– Ô, “doc”…

Seu desespero aumentava enquanto procurava saídas para ele:

  • Não sei mais o que faço com esta úlcera na minha perna… Não posso mais vestir minhas botas…

Atormentado pelos meus questionamentos, invoquei-os:

– Como?

  • Não sei, começou com uma feridinha e deu no que deu…

Inquieto com o tumor ulcerado que tinha em sua perna, foi logo se protegendo em sua patente:

  • Sou capitão-tenente da OM (organização militar) de abastecimento…

Referiu-se ainda a um sonho repetido que tinha e associou o mesmo a uma noite tranqüila:

  • Ô, “doc”, só consigo descansar bem depois que mato alguém no sonho e pode ser qualquer um, basta duvidar de mim…

Somando-se a essa história, o dentista que trabalhava comigo no ambulatório havia me contado que esse paciente não cuspia no escarrador após os procedimentos. Esbravejando que isso era frescura, engolia um sem número de amálgamas de mercúrio, resíduo de algumas restaurações, como se fosse o seu rancho. Fiz o diagnóstico toxicológico. Ao sugerir o tratamento, percebi de imediato a mudança de tom em seu rosto. Quando falei em homeopatia para tratar aquele repulsivo “brocotoma” em sua perna, fez cara de enganado, tonteando imediatamente a cadeira que o apoiava… Não preciso dizer que nunca mais o vi e quase fui “pro baileu”. Alguns boatos chegaram aos meus ouvidos pelo cabo que me assistia e parece que o sujeito arrancou aquilo com uma faca… Nossa senhora!

As manchetes não saíam da minha cabeça, pensava sobre as coisas que ouvia naquele ambulatório, sobre os heróis excepcionais que, se afastando da normalidade, trouxeram anestesia, na forma de insensibilidade e destruição sobre o caráter institucional desse movimento, e, então, pude entender mais sobre nós, sobre o país, sobre os governos ditadores a quem nos submetemos. Enfim, sobre toda essa herança. Em meio ao perdão, acenou dentro de mim a resposta: o excepcional é patológico. É como o menino gênio que só sabe matemática e atribuímos a ele honras ao mérito em geografia, história e, ainda, esperamos que nos ensine inglês. Dessa forma, se comportam as instituições gigantes que só são capazes de ver aquilo que é do seu tamanho, cometendo equívocos grosseiros.

As forças armadas, assim como todos os tipos de máfias e a própria igreja, são modelos excepcionais aqui estereotipados, mas que estão presentes em diversas empresas ou grupos menores, que compartilham dessas características. São manifestações extremas de controle sobre si mesmas, quer pelas regras, pela devoção ou pela consciência, respectivamente. Como traço comum, a fidelidade é mais importante do que a coerência. Frutos do monoteísmo, na crença em um único poder, sofrem ao acreditar que este poder vem de cima: do general, do chefe ou do Papa. Trabalham com a fascinação, pois isso, é excepcional. Zelam pela unidade e usam como instrumento a obediência, engrenagem para movimentar seu corpo conforme seus pensamentos. A hierarquia e os rituais são a tônica, recorrem aos invisíveis de sua cultura e à necessidade para sustentar seu patrimônio e sua atuação. Os gigantes são conhecidos pelo raciocínio lento e concreto, pela miopia, e sua burrice adulta ameaça a imaginação da criança. Isso caracteriza estruturas rígidas, excepcionais e milenares. Porém, é por não perceberem as coisas pequenas, como os resíduos de mercúrio que adoeceram o capitão, que se curvam à destruição. Afinal, foi um pé de feijão que salvou João e uma pedrinha, a de Davi, que matou Golias.

 

 

Poder: disciplina; desejo: dominar; medicamento: Mercurius solubilis.

Pra ontem, Medohrinum

Por que os pianistas não desenvolvem LER (lesão por esforço de repetição) com a mesma freqüência que os funcionários daquela seção? Foi a pergunta que fiz àquela funcionária da central de atendimento ao cliente, CAC como era chamada. Não estou falando daqueles pianistas do Congresso Nacional, que votavam pelos seus colegas e, por isso, foram assim apelidados pela imprensa, mas dos profissionais da música. Afinal, o pianista exerce sua função de forma mais intensa que essas profissionais do teclado. Seu tempo de dedicação é muito maior, ultrapassando as seis horas por dia da jornada de trabalho dessas funcionárias. Além da repetição incansável dos acordes que o treinamento diário de um músico exige. Foi por essa janela, a de uma funcionária com as mãos endurecidas, afastada há seis meses do serviço e com ligações especiais com a diretoria, que adentrei nessa empresa de assistência médica.

  • A instabilidade lá é um negócio impressionante, gerente não pára. Já apelidaram o cargo até de suicídio sem morte”.

As decisões são todas emergenciais, estamos sempre correndo atrás de um caso complicado… A sinistralidade não pára de subir… É tudo pra ontem, doutor. Noutro dia, peguei um dos donos chorando agressivamente, diante do chefe da emergência de um dos seus maiores hospitais, dizendo que não podia mais perder dinheiro. Vi a chefia lá da CAC, de dentro de seu aquário (sala de vidro), pegar o seu sapato, colocar em cima da mesa e ameaçar uma funcionária. Eu mesmo já fiz vários relatórios, mas nada que tenha mais de uma página é lido por alguém. Não há comunicação na empresa, o que é decidido lá em cima, só ficamos sabendo na hora de “assinar a promissória”. Nunca ouvi a palavra planejamento ser colocada em prática por mais de uma dupla de funcionários. O diretor não pára na sala dele. Noutro dia, foi até engraçado, pois ele se virou subitamente como se alguém tivesse cutucado suas costas. Tem gente no setor que vive com uma sensação de areia nos olhos. Acho que é por causa dos computadores. Às vezes, exagero nos detalhes: junta um dos donos da empresa, o diretor, o gerente, o supervisor e a atendente, todos resolvendo um mesmo caso, sem se lembrar de decisões anteriores de sucesso ou de processos previamente elencados. Parece que todo mundo chegou ontem à empresa. Ególatras machistas, mulher lá só tem vez quando fala e age como homem.

Conforme contava sua história, lembrava-me de uma lenda africana sobre uma frágil menina que queria se transformar numa guerreira poderosa e, para isso, saiu de casa muito jovem para capturar o feiticeiro que comia os homens de sua tribo, escravizando as mulheres que não paravam de trabalhar para atender aos seus caprichos. Esses não eram poucos e mudavam a todo o momento sem propósito. O que viesse a sua cabeça, aquilo que pudesse colocar em movimento, era a opção do momento que tinha para exercer seu poder e não sentir a dor. Continuei a ouvi-la:

  • Sabe, doutor, acabei me envolvendo afetivamente com um dos poderosos lá de dentro, o mais temido, por sinal, e o mais agitado. Está sempre de cara feia. Que mau humor!
  • Mas o que te atraiu nele? – sussurrei.
  • Mas isso é só de dia, à noite, ele é outra pessoa. Muito mais alegre.

A dor a que me refiro, na lenda, era de um espinho envenenado que se posicionava no dorso daquele malfeitor, colocado lá por membros da tribo como provação de coragem. Ninguém sabia mais disso naquela região, a não ser por um velho ancião, que já nem mais pertencia ao grupo encontrado por aquela menina, em sua peregrinação.

  • Já não sei como ajudar mais, ele é casado e não dá conta nem de seus quatro filhos, quanto mais de mim. Tenho é que me afastar dele, pois sinto-me culpada.

Foi então que me peguei aconselhando como o velho fez, na lenda, com a menina:

  • Tire o espinho envenenado.

Lançou-me um olhar surpreso, mas, após contar-lhe a história, retrucou:

  • Impossível, ele não deixa a gente se aproximar tanto assim, parece que anda encostado na parede, com o olhar para todos os lados.

Segui, então, com a explicação do velho:

  • É porque a dor a que foi submetido para a colocação do cravo envenenado foi tão grande que não permitiria a sua retirada, pois a sentiria novamente temendo a loucura. Por isso, é tão agitado para não abrir um flanco em sua retaguarda.

No conto, a jovem que queria ser respeitada um dia, uma guerreira, conseguiu tirar o espinho envenenado do feiticeiro. Os primeiros sinais manifestaram-se na natureza que retomou o ciclo da vida, a começar pela primavera, depois pelo verão, pelo outono e, finalmente, pelo inverno, trazendo para a região a estabilidade das estações do ano, antes açoitadas por incessante ventania. Seu tamanho diminuto, da menina, a ajudou a chegar ao espinho com mais facilidade, sem ser percebida pelo feiticeiro, assim como a paciente que pelo afeto operou sua alquimia, trazendo seu amor a uma consulta. Da mesma forma, fazem os transformadores de cultura numa organização: entram no jogo, aproximam-se do poder e, com um olhar submisso, tornam-se pequenos até ter o tamanho de um afeto, dessa maneira, penetram no coração da empresa, mudando os seus rumos para sempre. Conforme se submetia ao tratamento, deixava de lado o poder de submeter os outros ao seu momento, ao seu tempo. Senhor da tempestade, poder este que impedia a construção de uma empresa melhor, mais do que ninguém só desejava no início o prazer, mas na pressa só fazia ventar e nada construir.

Assim como o feiticeiro, não engolia ou matava os homens da tribo ou demitia os trabalhadores honestos, apenas os transformava em objetos obedientes. Deixava que acreditassem nisso, pois isso multiplicava o seu poder. Depois de curado, esvaziado de seu egoísmo e em vias de demitir-se, pois já não fazia o perfil da empresa, noticiou-me o encontro do verdadeiro amor: trazendo um convite de casamento com aquela que, agora já mexendo com destreza suas mãos, sorria ao seu lado. Tanto na lenda como nesta história, observamos a transformação da menina em mulher, do feiticeiro em doutor e deste doutor aqui, que vos fala, em aprendiz, pois perguntei novamente e, desta vez com resposta, por que os pianistas desenvolvem menos LER que as meninas do serviço de atendimento?

– Sabe, doutor, nós, atendentes, ao teclar as queixas emergentes e desamparadas do nosso cliente, as sentimos como se fossem nossas, por isso adoecemos, já o pianista, bem, só ouve a voz do seu coração.

 

 

Poder: mudança pelo tempo; desejo: crescimento desordenado; medicamento: Medohrrinum.

Imagem, silêncio e som. Staphysagria

Numa noite só, eu refletia:

Olho pro chão e meus pés ali estão.

Estendo o pescoço e vejo um planador…

À frente um vazio, quisera eu um desafio.

Mórbida semelhança o mar sem calor,

Amor sem furor, cirurgia sem dor…

 

Um passo adiante

E a imagem semelhante, apenas repetia…

Gestual insignificante

Que outrora amante

Agora paralisia.

 

Silêncio… Nem paz, nem tormento

Só expressa o sentimento

Da saudade, simplicidade.

Um convento,

obra da bondade

com o sofrimento.

 

Eis que de repente

pela fresta da oração

adentra em meu coração

que quase não sentia,

o sorriso flamejante do vulcão

fertilizante,

fingia que morria.

 

Meus pés me fizeram saltar.

Sabia que pra frente não iria.

Agora, em minha mente o planador

aplana a dor do que temia.

Viver sem euforia,

sem calor,

pois, enquanto escrevia,

ouvia uma canção de amor.

 

No dia-a-dia do meu trabalho, via:

  • Não consigo revidar à altura da agressão. Meu medo é me descontrolar e arrancar um olho de quem estiver lá do outro lado da linha. Mas, em vez disso, sinto-me mal e com vontade de chorar.

Estava eu no interior de uma agência de caça a CDs piratas, através de uma “superpaciente”, sim, super, pois fazia de tudo, inclusive ouvir reclamações dos “clientes”, ou melhor, dos “piratas”. Chegou com queixa de insônia que a fazia despertar às 4h da manhã, trazendo com ela uma colega, com idéias persecutórias:

  • Sou quieta, acho até que as pessoas são boas, mas não posso nem ouvir o telefone em casa que já penso que é uma ameaça ou seqüestro de algum familiar.

E continuavam a descrever aquele ambiente:

  • Ouço tantas barbaridades no trabalho e não devo dizer nada, pois pode complicar o processo.
  • Os cabelos de todo mundo na empresa estão caindo…
  • Tem uma menina lá que foi operada de apendicite. Sua ferida nem cicatrizou direito e já está de volta ao trabalho…
  • Tem gente com MBA, tendo de lidar com gente daquela classe…

Foi então que num tom secreto, mas altivo, uma delas disse:

  • A única coisa que me alivia é me masturbar quando chego em casa…
  • Estou ficando tarada, doutor? Estou? Prefiro isso a transar com meu marido…

Claro, pensei, e retruquei:

–         Você busca um alívio imediato, não a troca ou o prazer…

E ela continuava:

  • Já sei de várias colegas que foram até a diretoria pedir demissão, mas eles não aceitaram…
  • Noutro dia, ouvi dizer que, quando chega em casa e tem de alimentar a tartaruga que o filho ganhou, chora de dó do peso que a coitada carrega nas costas… Tá ou não tá ficando todo mundo doido?

O que há de semelhante entre a poesia apresentada primeiramente e a situação real vivida a posteriori é o retrato da indignação, do sofrimento de quem sente o poder do insulto e coloca-se distante sem expressar reação. Normalmente, observados em serviços de telemarketing e atendimento ao cliente, cujos rituais de respostas padronizadas desfiguram o ser e o serviço. Em contraponto, um desejo de criação, construção pura e digna e até inocente, manifesta-se nos currículos do pessoal, daqueles que, pela nobreza de seus ideais, estudaram e esforçaram-se para subir num pedestal solitário. Nesse movimento, negaram a mediocridade implícita do crescimento profissional. Crescimento sem fé, do poder, do dinheiro e da posição, pois quem quer que esteja em ascensão em um mundo que reverencia o sucesso deve ser suspeito, já que esta é uma era de psicopatia.

Essa empresa estava em colapso, não pelo que apresentara de resultado no ano anterior, mas pelo que viria a gastar com ausências de todo tipo, a começar pelos famosos “atestados de saúde”. Atendi também a chefe do departamento pessoal que me dizia que a pirâmide de crescimento da empresa era um tijolo embaixo e um triângulo em cima, pequeno, aliás. Essas criaturas lidavam com gente de “sucesso”, de dinheiro e de posição, gente que durante anos sem fiscalização reforçou a falsa crença de que o destino estava a seu favor e eles no caminho certo.

Um ano depois do primeiro atendimento e medicada homeopaticamente, observei que os insultos que aquela gente sofria pela desqualificação altiva a que se submetia transformaram comportamentos inocentes, de negação ou até de convicção onipotente pela turma de fiéis que desembainhavam as ações nobres de seus ideais, em comportamentos potentes, à medida que, pelo medo das retaliações, aumentaram sua fé.

 

 

Poder: insulto; desejo: creação; medicamento: Staphysagria.

Controladoria, Ignácia amara

  • Porra, eu já falei que não quero que mexam em minhas coisas! Cadê aquele desgraçado que eu mandei pagar aquela conta e ainda não voltou? Acho que vocês estão me confundindo com qualquer um! Comigo não!

Ao contrário do que podem estar pensando, não é desse chefe do departamento de pessoal, de um escritório de contabilidade, que, aos berros, dirigia-se aos seus funcionários, que vamos falar. Mas daqueles que, calados, ouviam os gritos desse que também era um dos sócios da empresa. Estamos falando dessas pessoas que, dos laços afetivos, fazem um cativeiro, colocando a necessidade acima da razão, transformando seus erros em tragédias.

  • Ajuda aqui, ela está pesada!
  • Doutor, ela começou a chorar e caiu no chão, desmaiada.

Sua face estava congelada, assim como sua disposição em reagir. Era uma das responsáveis pelo fechamento do caixa no dia de pagamentos dos funcionários. E por esses colegas foi trazida até o pronto-socorro.

  • Todos nós dependemos daquele trabalho, doutor.

Conforme seus colegas que a acompanharam até o local, todos estavam sob forte pressão, pois, se cometesse algum erro de cálculo, eram obrigados a repor o dinheiro de seu próprio bolso e havia ocorrido um grande desfalque nas contas.

  • Apesar de grosseiro, nosso chefe é uma pessoa justa.

A culpa assumida implícitamente naquela frase, sem que ninguém houvesse perguntado nada sobre a causalidade da turbulência, justificava o medicamento que seria empregado.

  • Tem gente com uma úlcera no estômago, outros com infecções de garganta de repetição, tem horas que a repartição fica vazia com tanta gente no médico.

Depois dessas observações, ficou claro que se tratava de uma doença epidêmica que contaminara a todos, assim como a paciente que chegou carregada. Aos dias que se seguiram, um após o outro, murmuravam-se queixas que, somadas, confirmavam o diagnóstico que paralisava a empresa. Ao mesmo tempo, ouviam-se na ante-sala alternâncias de humores de pessoas que, quase sem conseguir respirar de tanto rir, diziam:

  • Não posso freqüentar hospitais e enterros que fico assim… Quá, quá, quá…

Só tinha visto tais reações num grupo de teatro que freqüentava. Toda vez em que chegava a hora de fazer a encenação só se ouviam risos histéricos e incontroláveis. Foi então que decidi usar essa ferramenta para tratar do restante que se encontrava no local. Fui rindo também e pedi:

  • Mais alto, agora só pode falar sorrindo…

Sorrir também é contagioso, assim como chorar, e eis que, pela lei do semelhante, curando o semelhante, os nervos foram se acalmando e a paz se restabeleceu.

Há circunstâncias em que o medo toma conta da vida e, quando essa contradição se apodera de nosso espírito, temos de perceber que alguma coisa está errada. O medo de perder o emprego que aquela gente tinha era proporcional ao sofrimento a que se submetiam. O poder da humilhação transforma desejos gigantescos de expressão em espasmos sentidos fisicamente:

  • Doutor, tenho um bolo na garganta que não consigo tirar!
  • Não consigo ter relações sexuais com meu namorado, que tranco tudo!

Estamos lidando com uma situação em que tanto o desmaio como as contrações, ao contrário de histeria que estamos acostumados a diagnosticar, é um processo transformador do jugo da necessidade na escuridão dos pensamentos, convertendo todas as emoções para o íntimo de seus sonhos:

– Doutor, sonho colorido toda a noite, desde pesadelos até que sou um pássaro…

Vitimados pelas mesmas circunstâncias, outros, sem remorso, sorriem compulsivamente. Mas todos, sem exceção, anseiam pela liberdade.

 

 

Poder: humilhação; desejo: liberdade de expressão; medicamento: Ignácia amara.

O Bote, Lackesis trigonocephalus

A partir deste capítulo, resgataremos a nossa visão sobre saúde comunitária, mostrando como determinados conceitos podem atuar de forma tão eficaz como ocorreu nas epidemias infecciosas da Idade Média. Também abordaremos como essa forma de contágio, que se dá pessoa a pessoa, pode ser tão devastadora quanto a dengue, a febre amarela e outros males que açoitaram e ainda maltratam nossa gente. E, ainda, como a homeopatia com sua ação peculiar, somente em pessoas sensíveis, pode nos servir não só individualmente, mas também a ecossistemas de relação. Mostraremos que determinados grupos adoecem apenas por serem suscetíveis a determinadas formas de poder, cujos conceitos vividos por todos em determinado momento nos atingem de diferentes maneiras. É como se estivesse num bote descendo um rio, em que a elevação da cabeceira do barco corresponde à imersão da popa, sacudindo as pessoas que ali se encontram. Umas refletindo o desequilíbrio intrínseco da situação não suportam e caem, outras se arranham e algumas nunca mais andarão de bote novamente. Essas maneiras diferentes de reação, somadas, constituem arquétipos de medicamentos homeopáticos, perfis patológicos ou gênio epidêmico que, se analisados e tratados por nós, podem significar um avanço de saúde da população contaminada. Os capítulos seguintes vão expor casos de verossimilhança, aos quais tive a oportunidade de conhecimento, por meio do atendimento individual que fiz em meus pacientes.

Criadora e criatura – uma entrou muda e a outra mais parecia um radinho de pilha:

  • Vocês viram, vocês viram? O ganhador da loto mora aqui!

Aqui era uma cidadezinha de mais ou menos mil habitantes, onde o vento faz a curva, como se dizia antigamente. A menina não parava de falar, discurso inteligente, expressões e vocabulário de gente grande. A criadora entrou calada com olhar desconfiado, imaginando que ali já pudesse estar o abonado vencedor. A notícia espalhou-se rapidamente pela cidadezinha e não tardou a começarem as especulações:

  • Aposto como é o seu Tibúrcio da farmácia…
  • Que nada, esse já é endinheirado, Deus não iria presenteá-lo duas vezes.

A febre logo se espalhou e não tardou a aparecerem as brigas e os candidatos.

  • Agora é a minha vez, vou calar o bico de todo mundo, pague aí uma rodada dupla de “oldeight” pra moçada…

Não tardou a se aproximar o gerente da agência do Banco do Brasil, para conhecer o afortunado que ainda não havia se apresentado. Sem falar nas “quase donzelas” que já se esmeravam em lançar seu charme multicor:

  • Meu cabelo, eu quero bem louro…
  • Trate de pintar minhas unhas com as cores da moda. Ameixa, é claro…
  • Eu quero aquele vestido vermelho ali…
  • Bem decotado, hein! Não gosto de nada me pegando no pescoço!
  • Olha aqui, se eu te pegar jogando o charme para ele de novo, eu te mato!

O ciúme e a desconfiança imperavam, as amizades eram terminadas em poucas palavras, entrelaçar de olhares se misturava à orgia que se esculpia atrás das portas. Valia até feitiço para encontrar o maldito, aquele que tirara a paz daquela pacata cidade. Assim como as serpentes que desejam tecer os seus destinos, sofriam todos o poder de uma promessa não cumprida que, mesmo nunca prometida, mas imaginada, arrancava lentamente a saúde dessa gente.

Não demorou para que o pequeno posto de saúde batesse seu recorde de atendimento. Cheguei a ver uma mulher indo para a pequena sala de cirurgia com diagnóstico fechado de apendicite aguda, até que uma mancha de sangue, sem que fosse iniciado o corte, sutilmente por debaixo das cobertas, revelou a loucura e um grande desconforto na sala:

  • Ela está menstruada.

As dores de cabeça também não deixavam por menos, exigiam não menos que tomografias computadorizadas e, em alguns casos, ressonância magnética. O prefeito acionou a polícia para encontrar o dito cujo, responsável pelo déficit de caixa daquele mês, pois esses exames só eram realizados na cidade vizinha e a enfermidade era tamanha que os pacientes dependiam de ambulância UTI para transportá-los.

  • Minha filha não pára de vomitar, acho que é uma virose.
  • Amiga da Lite, disse o doutor sobre aquele caroço na boca do João! Essa fofoca está me sufocando…

E assim continuaram os transtornos, em sua maioria nada que tenha lesado o corpo, a não ser por aqueles já doentes que pioraram ainda mais seu estado de saúde ou por outros que ficaram com uma impressão tão forte do ocorrido, que decidiram abandonar todos os bens materiais e viver pregando o amor e a compaixão. Desses tenho algumas notícias, dez anos se passaram e uma cartomante famosa, forjada naquela mesma época, disse-me que já havia constatado o óbito de pelo menos quatro.

Assim, temos a doença de hoje, rica em sintomas, pobre em exames com diagnóstico explícito, de alta morbidade e desconforto, múltiplas causas, imperceptíveis ao próprio sujeito e que, sem intervenção, com o mesmo fim das demais.

A propósito, nunca se descobriu o nouveau riche, ou melhor, especula-se que aquele bilhete foi encontrado com um dos anões do orçamento, lá no Congresso Nacional.

 

 

Poder: traição; desejo: seduzir; medicamento: Lackesis.

Sobre o parlamento inglês, a ciência e a homeopatia

Sou médico homeopata há 20 anos e doutorando em medicina preventiva pela USP, São Paulo. E fico surpreso toda vez que vejo na mídia inferências políticas sobre a homeopatia. Desta vez o parlamento tenta acabar com verba mínima destinada ao estudo deste setor (500 mi), uma vez que gasta 13 bi com a medicina tradicional estatizada. Por estas razões tento explanar sobre alguns aspectos lógicos.

1) É verdade que os trabalhos relacionados a homeopatia, na chamada medicina baseada em evidências, são fracos e com muitos problemas metodológicos, afinal sem investimento privado algum nesta área e com pouquíssimo investimento público, estas pesquisas são dependentes de alguns heróis que abdicam de comprar um carro ou apartamento para fazer pesquisa.

2) Há um questionamento preliminar se estes estudos devam ser realizados no modelo epidemiológico tradicional, pois a homeopatia como a psicologia e a fisioterapia propõem tratamento muito individualizado, não sendo recomendado investigação populacional. Afinal a única coisa em comum com a medicina tradicional é que usa medicamento, mas sequer a escolha deste é dada em cima pressupostos fisiológicos similares a alopatia e a enantiopatia.

3) Existe um problema enorme na Europa com relação aos profissionais que exercem a homeopatia, não são médicos em sua maioria. Este sim é um problema maior, pois existe muito erro relacionado ao não diagnóstico e há omissão de tratamento necessário.

4) A homeopatia parece ter menos atuação sobre doenças e uma atuação ímpar sobre as enfermidades (sofrimento que rodeia a doença) o que coloca a assistência médica diante de um front inexplorado pelos programas de saúde pública e prevenção. Podendo vir a ser uma ferramenta poderosa na redução de custos numa área que ainda não encontrou uma saída efetiva e eficiente.

5) A homeopatia existe há mais de 200 anos apenas por proporcionar melhora aos seus pacientes, não se constituindo nenhuma seita, partido ou corporação, não está nem no curriculum das escolas médicas o que a meu ver, só aumenta a ignorância do profissional de saúde, cada vez mais doutrinado a prescrever “receitas de bolo”, perdendo inclusive a capacidade para resolver possíveis efeitos colaterais correlacionados.

Após esta argumentação convido os leitores a fazer um julgamento particular se:

1) Os investimento em pesquisa nesta área deveria aumentar ou diminuir.

2) Se a regulamentação, atribuição principal de um congresso ou parlamento não deveria ser em relação aos profissionais que a exercem e a regulação das escolas médicas, aptidão dos cursos e pós graduações. Afinal a quem verdadeiramente interessa a saúde, o paciente, este continuará a usar e a procurar alternativas… A menos que sua experiência seja nociva a sua saúde, o que até o momento também não foi comprovado.

Enfim lhes digo que a ciência assim como a homeopatia tem problemas a solucionar… Não a sufocar… A ciência pode trazer a segurança que a homeopatia precisa para uma maior difusão e a homeopatia pode trazer desafios a ciência para melhorar suas observações. Então por que colocar político no meio, sufocando o pouco financiamento que existe de uma prática que há meu ver, tem muito a contribuir com o bem estar das pessoas…