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As Carolas. Bryonia alba

– “Nosso irmão protetor, o vigário de nosso senhor. Nossa casa é mais forte, o abrigo de nosso senhor”…

Foi em meio à espera de um parente que chegava de viagem, em pleno saguão do aeroporto internacional, que, de repente, ouviu-se uma agitação. Adentrou um punhado de senhoras cantando eufemisticamente o refrão acima, enquanto envolvia um modesto cidadão de batina que, imóvel, sorria de boca aberta, disfarçando profusa transpiração. Não tardou para que minha curiosidade me mobilizasse em direção a uma dessas senhoras para perguntar-lhe o que estava ocorrendo:

–         Meu querido, o Papa designou este irmão para salvar nossa paróquia, que já não tem verbas nem para o café. Foi Deus, juntamente com nosso senhor Jesus, o Cristo, que atendeu às nossas preces… Nosso irmão protetor, o vigário de nosso senhor. Nossa casa é mais forte, o abrigo de nosso senhor…

Coincidentemente ou não, no mesmo dia atendi outra senhora ligada, agora, à igreja evangélica. Suas atitudes e dedicação não eram menos enfáticas:

–         Tenho minha igreja, minha fé e essa dor no joelho que não passa.

–         Quando começou a dor, senhora?

–         Ah, já faz uns três anos.

–         O que mudou em sua vida nesse mesmo período?

Silêncio.

–         O que mudou?

Repetindo a minha pergunta, ela disse expressando uma atitude de raiva:

–         O que mudei? Mudei de igreja.

Perguntei com certo receio de apanhar:

–         Por quê?

–         Porque descobri umas safadezas do meu marido e, ao conversar com o conselheiro da igreja, o mesmo deu razão pr’aquele vagabundo…

–         E aí?

Permanecendo imóvel continuava a responder minhas provocações:

–         Como e aí! Peguei minhas coisas e fui para a igreja da direita.

–         Que coisas? Ou melhor, que safadezas foram estas?

–         O meu marido ora… Desde então, tenho estas dores que não param… Não posso me mexer e só melhoram quando aperto, mas não posso ficar com a mão sobre o joelho.

–         A senhora tem mágoas?

Com um ar nostálgico, respondeu-me:

–         Mágoas? Fico me lembrando daquele tempo em que estávamos construindo a igreja. Quem fazia o caixa era eu. Juntava cada centavo, cada tijolo daqueles tem o meu suor…

–         A senhora é calorenta?

–         Sou.

–         Tem sede, boca seca?

–         Não. Sim.

–         A propósito, já perdoou o seu marido?

–         Já, mas tenho ódio só de pensar…

–         Por que não se separou?

–         Sou evangélica, casei na igreja, o ajudei a sair da bebida e até já apanhei. Mas casamento é pro resto da vida. Estava sempre lá com minhas orações, quando gritava comigo, cantava uns hinos da igreja até Jesus ouvir… Minha reza foi tão forte que ele acabou virando pastor. Hoje, eu o ajudo nas reuniões.

Vocês já entraram em uma excursão com um grupo desses? Já tiveram uma conversa sobre a vida com essas senhoras? É impossível sair deprimido. Já perceberam a dedicação que essas senhoras têm por suas igrejas? Suas casas? A fé com que se agarram ao seu “tutor, da moralidade”? E suas crenças? Imutáveis. No caso das “senhoras moças” da paróquia,  a recompensa superou o rancor, permitindo salvar a sua casa e, possivelmente, a saúde de algumas daquelas senhoras. A nostalgia e a paralisia são a tônica. Nostalgia do tempo em que tinham controle sobre suas contas em vez de paralisar. Paralisam para não quebrar. Afinal, a estagnação conceitual demonstrada na idéia de casamento, na relação paternal com a igreja, com a figura do salvador – tutor. Pela economia de movimentos de seu joelho com o casamento vagabundo – pastor. Provas de fidelidade à fé transformadas em conquistas de casas e casamentos. Como troféus, investiam em feitos heróicos, deixando-as mais próximas do Cristo. Temos aqui dois exemplos: um de sucesso, o de “casas” e outro de fracasso, o de “casamento”. Ambos submetidos ao mesmo poder que cega-nos ao objetivo, à conquista. Pois da mesma forma que a atitude das senhoras supervalorizavam o tutor, também o sufocavam, atribuindo-lhe um valor maior que o seu de direito. Assim como a evangélica que transformou o prazer de uma relação a dois num feito heróico, numa conquista, num pastor. Neste último caso, o insucesso social, a fez adoecer. Às vezes, se adubarmos demais a terra, a envenenamos, permitindo crescimento de ervas daninhas ao nosso real propósito, que deve ser sempre o amor e o respeito ao outro:

–         Minha senhora, o plantio é livre, mas a colheita é obrigatória. As bromélias não são flores e as trepadeiras, também parasitas…

 

 

Poder: ira; desejo: de controle pela imobilidade; medicamento: Bryonia Alba.

Da divisão à multiplicação. Silícia terra

–         Pois não, em que posso ajudá-la?

–         !!!

–         Você veio sozinha?

–         !!!

Depois da segunda pergunta sem nenhuma resposta, pensei que ela estivesse de sacanagem comigo, afinal, já é uma adolescente e não precisava de interlocutores. Foi quando ela deu um olhar longo através da porta e, com discreto movimento para trás da cabeça, acenou para que seu pai, meio sem graça, entrasse.

–         Eu falei para ela conversar sozinha, mas não adianta não… Pensávamos até que ela fosse muda, só veio falar alguma coisa aos quase dois anos de idade. Para atender um telefonema é uma dificuldade. Ela não fala de jeito nenhum.

Foi quando me lembrei de um conto infantil que era mais ou menos assim: o velho mau explorava um menino, ameaçando-o com trezentas chibatadas se não trouxesse das areias do deserto moedas de ouro que tanto ambicionava. O fato é que, transformado pelo velho bruxo em corpo de larva e cabeça de sapo, o físico esquizóide do menino o isolava dos demais garotos de sua idade que insistiam em zombar de sua aparência. Esse “defeito” também o fazia muito especial, pois era o único a conseguir se embrenhar naquele terreno arenoso e movediço à caça daquele valioso metal. Fazia esse serviço como se tivesse dívidas com o velho e culpa pela maldição encistada em si. Prosseguindo em seu carma naquela misteriosa região, certa vez, interrompeu sua missão para salvar uma lebre presa numa armadilha que não tardou a se revelar fada e por conta disso atendeu o menino em um pedido pelo gesto benevolente. E, a partir daí, cada vez que ia atrás do ouro, encontrava algum animal em perigo, repetia o gesto e este se transformava no direito a outro pedido. Isso já estava se transformando num moto perpétuo, num sacerdócio, quando o último animal salvo por sua bondade o indagou:

–         Por que você sempre pede uma moeda de ouro como retribuição?

O menino, metade larva, metade sapo, explicou em meias palavras sobre a prisão em que vivia e o castigo que o esperava, se não levasse a moeda.

De volta à consulta, perguntei à já menina-moça:

–         Você tem amigas?

Em meias palavras, ela respondeu:

–         N…ã…o.

O pai a interrompeu e disse que no colégio a chamavam de cabeção, não só pela aparência física, mas também por ser considerada uma aluna excepcional em matemática.

É impressionante como são obstinadas essas crianças. Obstinação que revela um grande medo de errar e de receber críticas. Isolam-se, como na fábula, para não serem alfinetadas pela gozação cruel de seus pares. Tímidas e milimétricas em seus pensamentos, não toleram sequer serem consoladas. Nada que ameace o equilíbrio que constroem, como pirâmides feitas com cartas de baralho. Como na fábula, esquecem-se de suas verdadeiras necessidades, da transformação alquímica em menino, fazendo pedidos menores, mas que lhe trazem segurança imediata e conforto da não punição. Deliciam-se em cálculos métricos, como na contagem das moedas, pois dessa forma reduzem e controlam seu mundo precisamente, abstendo-se de viver. Vivem divididas, entre cabeça de sapo e corpo de larva, e, por isso, temem o que corta e o que é capaz de separar.

– Noutro dia, doutor, fomos levá-la a um pronto-socorro para costurar sua cabeça machucada numa queda… Precisa ver o escândalo que fez quando a médica se aproximou com a agulha anestésica… Esta “coisiquinha” parecia um sabonete, ninguém conseguia segurar a garota…

É necessário transformar a forma de ver a vida. Substituir a divisão pela multiplicação é enxergar a vida e não ser visto por ela.

–         Falar em público, doutor, nem em pensamento, não vai nem amarrada…

Para isso precisa saber que um homem não se faz por suas lembranças, pecados ou defeitos, mas por suas atitudes, e isso só pode ser conseguido se tirar do casulo seu corpo de larva e querer se libertar de maldições quando lhes são dadas as oportunidades de quebrar estes feitiços.

 

 

Poder: da crítica com ironia; desejo: isolamento; medicamento: Silícia.

O Ego e a Tecnologia. Veratrum album

–         “Benhê…”,

–         O que você quer?

–         Traga o meu chinelo!

Foi assim que conheci esse casal já idoso, ao adentrar na casa dos avós de um amigo que, aqui, os chamo de Ego e Tecnologia, por razões que entenderão. Conheci esse colega em um curso de Marketing. Ele trabalhava numa empresa de biotecnologia de ponta a que se referia normalmente como “a nossa empresa”, mesmo não possuindo títulos ou ações da mesma, apenas um cargo gerencial. Reclamava freqüentemente da soberba com que os cientistas de plantão se dirigiam a ele em “seu departamento”, é claro. Não tardei a perceber a semelhança com Ego, o seu avô:

–         Entre meu filho! Na minha casa, não costumamos receber ninguém na portaria…

Sentindo meu acanhamento, Tecnologia, a sua avó, logo tratou do cortejo, dirigindo-me ao seu sofá mais confortável.

–         O que você quer meu querido: um chá, uma bolacha, um café, uma água…

Não tardei a interrompê-la, aceitando a água, antes que oferecesse tudo que havia em sua despensa, quando o avô tomou a palavra:

–         Qual é seu sobrenome rapaz?

–         Vilhena.

–         Filho de banqueiro?

–         Não, de comerciante mesmo.

–         Descendência européia?

–         Portuguesa, mais precisamente, senhor…

–         A nossa é dinamarquesa… Descendemos diretamente dos vikings

Não demorou muito e Tecnologia, a avó, chegou com uma bandeja irrepreensível onde não faltava nada. Até o controle remoto da televisão repousava ao lado do guardanapo. Foi quando a conversa começou a ficar mais interessante, pois “na empresa de seu neto” desenvolvia-se clonagem de materiais.

–         Entendo que essa questão de clonagem humana seja superficial, o negócio é de “quanto” estamos falando e não de “quantos”…

Pomposamente, meu colega esbravejou, referindo-se ao valor financeiro do negócio. Não tardou e logo descobri que eram dois contra um. Quando Ego então resolveu esquentar a conversa:

–         Afinal, precisamos de mão-de-obra barata para otimizar os custos…

Estava a ponto de avançar num viking, quando adentrou novamente a senhora Tecnologia:

–         O que você quer meu querido, mais um chá, uma bolacha, um café, uma água…

Respirei fundo, buscando um movimento compensatório à minha ira, e perguntei:

–         Onde fica o banheiro, senhora?

–         Por aqui meu querido.

Conduzindo-me pelo braço, tive de dispensá-la na porta da toilette, era como chamavam o nosso banheiro. Ao retornar do nosocômio, a conversa ainda rolava como se estivessem nos corredores do Palácio do Alvorada, vazio e de alto-falante em punho. Só se ouvia o eco de suas vozes… Foi quando tive uma idéia sagaz:

–         Dom… (Ego), imagine se a idéia pega e decide fazer cópias de vossa senhoria… Teríamos Dom… (Ego) I, II, III. Depois veríamos um após o outro a reivindicar um título mais nobre que o anterior não obteve. E o que seria pior é que no final da fila observaríamos um conflito danado, pois o último sempre acharia que o anterior não esteve a sua altura. Já pensou em que lugar eles o colocariam?

Fez-se um silêncio mortal por alguns segundos, aproveitei a deixa para me despedir do netinho, quando aterrisou novamente a Tecnologia:

–         Ah… Meu querido, você não quer mais um chá, uma bolacha, um café, uma água…

No dia seguinte, no curso, não pude evitar o contato do vizinho que me perguntou:

–         Passou bem a noite? Nós fomos até o hospital Albert Einstein para tomar soro. Tivemos uma infeção intestinal daquelas…

–         Diarréia? – perguntei.

– Sim, uma gastroenterite rara – disse o professor doutor, que era o presidente titular da AIGI (Academia Internacional de Gastroenterocolites Intercontinentais…

Acreditaram que foi alguma coisa naquelas bolachas que sua vovó não parava de oferecer. Sentia-me bem, exceto por um sentimento de culpa, pela brincadeira que fiz com ambos. Obviamente que não foram os biscoitos, mas, talvez, a “bolacha” que dei ao ameaçar suas posições soberanas com cópias mais cruéis que as deles mesmos. Afinal, seria impossível garantir cópias de humildade e fidelidade ao original.

Fui para casa pensando no episódio, quando percebi que aquele casal era um símbolo da era moderna ou, talvez, um arquétipo. Vivemos hoje numa sociedade de direitos, “graças a Deus”, mas infelizmente com relações de poder muito distintas. É muito fácil observar isso. Basta que perguntemos a nós o que nos é permitido fazer: se a resposta for sim, perguntemos outra vez: já conseguimos fazer tal coisa que imaginamos, aí vem a resposta não. Ter direitos é ter permissão, ter o poder é ter a capacidade de conseguir fazer.

Vejo uma sociedade democrática nos direitos, mas nazi-fascista quanto ao poder. Temos o direito de estudar, mas não temos o poder de pagar uma universidade. Temos o direito ao lazer, mas não temos o poder de pagar pelo ir e vir, viajar, adquirir um bem ou um entretenimento… E, por isso, talvez nos colocamos de forma paranóica diante de situações em que temos o poder, mas não o direito. Como usar o dinheiro público em benefício próprio, por exemplo, quando sob o poder do voto. Queremos então exercer este poder de qualquer forma e a qualquer custo. Nos entregamos ao conforto que o poder da tecnologia nos proporciona, exercitando cada vez mais as nossas vontades, os nossos egos, com um mínimo de esforço de forma irresponsável e insaciável como crianças sem limites. Nos iludimos como aquele senhor que, se podemos, logo temos o direito. Porque podemos clonar, logo multiplicamos. Porque podemos pegar, logo roubamos. Porque podemos trocar, logo usurpamos. O fato de ser casado o senhor Ego com a senhora tão simpática e subserviente, dona Tecnologia, não lhe dava o direito de tratá-la como escrava e nem de defender a clonagem como forma de obter benefícios étnicos. Estava fazendo mal a si mesmo, isolando-se cada vez mais e com menor atividade, menos vida e mais dependente de “dona” Tecnologia. Da mesma forma, vemos “autoridades” subvertendo a ordem, numa busca insaciável daquilo que não tiveram enquanto cidadãos de direito, mas sem poder. É isso que alimenta a corrupção e esta é um mal diagnosticável numa sociedade com tantos direitos e tão pouco poder como a brasileira. O ego representa a visão dos direitos e a tecnologia a do poder de realizá-los. Ambos são pêndulos essenciais de uma balança que precisa estar em constante equilíbrio ou todos adoeceremos ainda mais, como a disenteria que tiveram os egóicos vovô e netinho, ao perceber que direito não era garantia de poder, poder ter saúde.

 

 

Poder: mais-valia de direitos; desejo: de ter poder; medicamento: Veratrum album.

Corretagem. Stramônium

–         Meu cérebro diz que estou morrendo, acabou o sopro de vida…

–         Nariz? Tampado.

–         Tem umas bolinhas brancas e amarelas que saem da garganta, doutor…

–         Dermatite de contato? Sim.

–         Cabelo fino não cresce.

–         Palpitação ao deitar à noite? Sim.

–         Unhas fracas? Sim.

–         Quando criança, bronquite, depois da menstruação, urticárias de todos os tipos.

–         Meu sangue ferve, sou extremamente calorenta, meus pés e mãos queimam…

Essas eram as queixas da dona de uma das melhores empresas de corretagem que conhecia. Vendia planos de saúde até pela internet. Andava pelos corredores de sua empresa a passos tão curtos quanto determinados, com a velocidade de uma turbina, enquanto, simultaneamente, observava todos os detalhes do atendimento geral.

–         Mantenho tudo sob controle, mas não imponho minha vontade. É essa correria o dia inteiro e todos têm de ter esse ritmo aqui. Não paramos de colocar pendências na cabeça. Violência? Não… Somos muito tranqüilas – entendamos frias – e rápidas na hora da decisão. Cortamos o emocional pela raiz. Não temos medo do que não dói, somos religiosas e não admitimos precisar de ninguém…

Enquanto falava sem parar, com aquele olhar “estalado”, como se quisesse arrancar a verdade sobre a minha pessoa, esboçava eventual sorriso sardônico sem perder um só vacilo dos funcionários que a cercavam. A fúria daquela mulher refletia nos números da empresa que, com três anos de existência, já dispunha da liderança no mercado.

Voltando a analisar as questões de saúde pregressas e pessoais, perguntei-lhe:

–         Histerectomia?

–         Total!

–         Hepatite?

–         Aos cinco anos.

Mas foi na pergunta mais simples que notei certo titubear, quebrando o ritmo alucinado com que respondia às questões:

–         Feliz?

A partir desse momento, a consulta mudou e os segredos foram revelados. Quando perguntamos sobre desejos, aversões e fantasias, falamos do nosso eu mais profundo, uma rede de crenças e valores que serve de sustento a nós mesmos e, conseqüentemente, à nossa saúde. Pois é sobre aquilo em que acreditamos que repousam nossas atitudes. Nós, doutores, nos detemos mais aos fatos que às fábulas, esquecendo-nos de que são essas últimas os fios que compõem essa rede segurança. É ela que às vezes está doente, ou melhor, inadequada ao mundo a que nos submetemos.

–         Meu ídolo é Dom Quixote… Eu falo a língua dos anjos e isso foi uma revelação pra mim, agora tenho sincronicidade com Deus.

O mundo é governado tanto pela loucura quanto pela sabedoria, sendo difícil distinguir quando estamos diante de uma ou de outra, pois o que as transformam são os olhos do observador. Acreditar em nossos pacientes é tão fundamental quanto a nossa existência naquele momento.

–         Vejo bichos saindo do chão, tenho visões quando estou nas minhas orações…

Naquele momento, a lembrança do núcleo do seu sofrimento gerou um sofrimento demasiado, não resistiu e retornou espontaneamente às tecnicalidades do cotidiano.

–         Se há uma coisa que me mata é quando recebo uma notificação do Ministério do Trabalho. Neste meu negócio, é muito comum as pessoas pedirem as contas e entrarem na justiça contra nós. Isso me deixa com ódio mortal… São pessoas que ajudei quando precisaram e até dinheiro emprestei… Somos honestíssimos com essas questões trabalhistas, pagamos tudo que é da lei. Agora, quero ver resultados…

A lei é fria, pensei eu… As relações estabelecidas nessas empresas são reflexos de um mercado altamente competitivo, no qual o que vale é quem dá mais. E se não se ganha de um jeito, ganha-se de outro. Os clientes são dois: a empresa interessada em comprar o seguro de saúde e a empresa que presta o serviço de saúde. O que transforma a empresa de corretagem num intermediário que tem de agradar a “Gregos e Troianos”. Relacionamento é o fiel da balança, e, por isso, as decisões não passam pelo habitual custo-benefício, mas castigo-recompensa ou dor-prazer. Dessa forma, alimentam-se com prêmios, vende-se. Perder um cliente para a concorrência é coisa tão corriqueira que foi necessário estabelecer regras sindicais, a fim de diminuir o “quem dá mais ou recebe menos”, tentando restabelecer a ética e a convivência de mercado. As ações trabalhistas exageradas contrapunham-se a uma exigência paranóica de lealdade, refletindo a falta de exemplo de seus líderes, pois, como mencionado anteriormente, também atendiam a dois deuses diferentes, duas empresas clientes evidenciado um conflito de interesses afinal recebiam de quem prestava o serviço e não de quem contratava. Sua obstinação desmedida por resultados não incluía estabelecer uma relação do trabalho com a vida, exagerando um pouco, mas lembrando dos campos de concentração nazistas, a eficiência perfeita dos processos enfraquecia o propósito de viver. Predadora por natureza, a empresa colecionava mágoas de seus inquisidores: ex-empregados, ex-amigos e ex-confidentes, conforme apontam os depoimentos trabalhistas. Desejosos de significado, significado este que o dinheiro já não mais podia dar, afiliavam-se a seitas, cultos, rituais ou religiões para poder se religar às questões básicas da vida: amor e cumplicidade.

 

 

Poder: do resultado; desejo: de significado; medicamento: Stramônium.

A beijoca. Psorinum

–         Vou dar uma beijoca na sua boceta!…

Foi com esta frase desconcertante que algumas colegas de classe e eu fomos apresentados a uma colônia psiquiátrica no Rio de Janeiro, no primeiro ano da faculdade de medicina. A Colônia Juliano Moreira era o lugar: um conglomerado de malucos e alguns nem tão loucos assim. Indivíduos que ali viviam sob um cenário que lembrava, por fora, os filmes americanos de faroeste e, por dentro, as masmorras de castelos medievais.  Estávamos ali deliberadamente, dando nossos primeiros passos na relação médico-paciente, tema objeto de um trabalho que deveríamos entregar para a cadeira de biologia. Estávamos acompanhados por um profissional de fino trato, que era saudado por todos que entrecortavam nosso caminho e que exibia acenos de simpatia e de respeito aos moradores locais.

–         Avisa para o Xerife que estou indo para a ala C…

–         Xerife? – perguntei.

–         Sim. Assim são chamados os responsáveis pelos afazeres aqui. Na verdade, eles não são malucos de fato, mas ganharam o direito de ser pelas mãos da Justiça, que os julgavam criminosos ou perseguidos por crime. São pessoas temidas pelos demais, organizam um pouco a sujeira local de seus albergues e quem desrespeitá-los tá numa fria…

–         E vocês, não têm medo?

–         Doutor é respeitado por aqui. Não podem nem pensar no eletrochoque…

Lembro-me bem da inquietude daquela gente, entramos numa sala em que havia um ser todo sujo, deitado num lençol mais sujo ainda, que se coçava sem parar e, segundo o guia, não podia ver água pela frente.

–         Ai, me protege santíssimo, me protege santíssimo, me protege santíssimo, me protege…

Enquanto andava e coçava, balbuciava palavras repetidas de salvação, como se carregasse todas as culpas do mundo, sem falar naquelas feridas maltratadas com fissuras “sangrantes” e cheiro pútrido.

A insolência daquela primeira frase, a da beijoca, dirigida à minha colega, também repetida muitas vezes por aquele maluco beleza que nos perseguia com idéia fixa, marcou. O estresse vivido pelo grupo só não superou a obstinação daquele que, por muito tempo afastado de nossa “civilização”, já não sabia percorrer os caminhos, os rituais, os códigos para acessar o objeto do seu desejo. De forma infrutífera, suas tentativas de assédio só levavam a mais inquietações, risos e constrangimentos. Convivi com esse mistério por muitos anos, só o desvendando com minha dedicação ao estudo da homeopatia.

Percebi que desejos, fantasias, sonhos, prazeres, aversões e manias também são matérias médicas. Aquilo que Jung chamava de inconsciente pessoal e coletivo se manifestava naquele momento de forma intensa. O “eu” daquele sujeito era absolutamente consciente dos seus desejos que, certamente, eram compartilhados por mais alguns ali presentes, haja vista a beleza da colega. Risos transformaram-se em acessos de tosse, constrangimentos em rubor, palpitação e inquietude. Via naquele momento desejo se transformando em sintoma pelo poder que a nossa cultura, os nossos códigos e a nossa hipocrisia infringiam sobre nós.

 

 

Poder: da verdade; desejo: ser quem eu sou; medicamento: Psorinum.

Mais próximos de Deus… Sulphur

  • Buá, buá, buá…
  • Não sei o que acontece com o bumbum dessas crianças, por mais que os limpe estão sempre sujos… Isso aqui mais parece um chiqueiro! E que fedor! Nossa Senhora, valei-me!

É isso mesmo o que você está pensando. Estamos numa escola-creche com criancinhas de um mês a dez anos de idade. Perguntei do que sofrem e, no meio da agitação e do desespero, veio-me uma frase de Eleonor Roosevelt: “Por não terem quase nada, as crianças precisam confiar mais na imaginação que na consciência”.

Esta é a chave para o sofrimento daqueles que, assim como muitos bebês, têm mais imaginação que consciência e que encontram na filosofia, na meditação, na excentricidade e na ruptura com o convencional um caminho para exercer a sua vocação. Com uma criatividade desmedida e pensamentos reentrantes, foi meu filho, na época com 10 anos, que acrescentou a resposta:

  • O problema com esses “caritchas” é que eles pensam em tantas coisas ao mesmo tempo que não conseguem entender… É como se, ao se lembrar da sua turma do colégio, começassem pelas roupas dos colegas, do tempo se estava frio ou quente… sem falar nas brincadeiras e sacanagens simplesmente…

O que os tocam são o mundo paralelo às realizações, seus valores são diferentes daqueles que a sociedade nos impõe como normais e adequados, tais como se vestir bem, comer direito, estudar para se formar, constituir família… Um resgate precoce do movimento hippie… Mas, lembrar-se de quê? O que aqueles bebês seriam capazes de ver que nós não somos, para estar em tamanha agitação?

  • Vai ver a sopinha do Luís, acho que está quente demais para aquele calorento. Misture com água fria que ele come e pára com a “melecação”… É um enjoado mesmo…

A memória é a faculdade mental mais traiçoeira que existe e, juntamente com a imaginação, é capaz de tudo, até de adoecer. Lembrar-se de algo pode evitar que coisas ruins se repitam, mas pode também fazer com que essas mesmas coisas não desapareçam, fazendo você refém dela, transformando fantasia em realidade. Será que aquelas pequenas criaturas sofriam pela lembrança de um mundo por nós esquecido? Um mundo forjado antes da concepção, comportando-se como um computador de baixíssima memória “RAM”, com pouquíssima capacidade de administrar o volume enorme de informações que consegue armazenar na “ROM”? Ou como um caldeirão (ROM) que precisa de uma pá (RAM) para fazer andar a mistura e não estragar ou desandar, as informações ali contidas? Será que a imaginação é uma memória antepassada (ROM) e o que chamamos de memória (RAM) é apenas um gerenciador de acontecimentos mais recentes?

  • A imaginação daquele garoto deixa os outros em polvorosa…
  • Como é que consegue inventar aquelas histórias?
  • Aquele cabra já nasceu esquisito.
  • Só tem cuidado com os “bichinhos” da aula de ciências… Mas só os maiores… Os insetos não quer ver nem de longe.

Trazendo talvez experiências passadas, chamavam de imaginação o que para aquele garoto era realidade.

Quando adolescente, uma vez, um mendigo bêbado, desses que adoram o confinamento, cheirando azedo e dizendo coisas horríveis só pra que você se afaste dele, abordou-me e protestou em tom enfático:

  • Cuidado com os abutres, pois dizem ser dos outros os corpos que eles transformam em carniças…

A princípio, sem entender nada, fiquei com essa frase por anos em minha mente, encontrando significado em diversos momentos de minha vida, em que os perversos se aproximavam travestidos de santos. Hoje, ao ver a mobilização que alguns grupos nas escolas e nas empresas fazem contra os estranhos, os diferentes, os esquisitos e o quanto esses me parecem inocentes, rejeitados por estarem invariavelmente, misturados à lama e atrasados, com seus uniformes rasgados penso nos ensinamentos bíblicos e tenho a certeza de que essas pessoas, com suas mentes creativas, estão mais próximas de Deus, e aconselho, como bem escreveram Robertson Davies e James Hillman:

“Cada um descobre seu mistério à custa de sua inocência.”

E continuam: “O tempo precisa ficar de lado, caso contrário, o antes determina o depois, acorrentando você a causas passadas sobre as quais é incapaz de ter alguma atuação”.

Conectar-se à vida é não desvalorizar as atividades do cotidiano em detrimento das intelectuais, metafóricas ou metafísicas, mas, sim, compartilhar com o outro seus temores, arrumar seu quarto, fazer compras no supermercado, encarar algumas filas, ir a alguns aniversários caretas e, quem sabe, até mesmo, cozinhar…

 

 

Poder: arrumação; desejo: redescobrir; medicamento: Sulphur.

Cebolão. Thuya occidentalis

–         Se eu fizer o que preciso, morro, mas se não fizer é a morte. Já não agüento mais estudar esta matéria, tenho prova amanhã e sinto como se não soubesse nada, não consigo nem pensar no assunto… O pior é que a prova é oral e, aí, começo a balbuciar as palavras, esqueço o assunto e parece que tudo começa a girar… O João está com a monografia pela metade, já escreveu mais de 20 vezes e seu orientador manda fazer de novo… Fomos reclamar da professora Maria José com a coordenação, pois é a quinta vez que ela dá a mesma aula. A coordenação diz que ela tem mestrado, doutorado e “pós-doc”. Vai ver que é por isso que só fala da mesma coisa… Tenho medo de reclamar muito e ficar marcado… Aí, o doutor já sabe, nunca mais me aprovam… Estou meio decepcionado, pensei que faculdade fosse outra coisa…

Esta jovem chegou até mim com uma aparência que dava dó. Arrastado por sua sombra, notava sua fragilidade pelo cuidado que assentava seu pé ao chão. O pensamento científico definitivamente não atende às individualidades. Montado para isolar poucas variáveis do fenômeno em observação é concêntrico e move-se numa espiral que afunda, asfixiando o observador. Envolve o objeto em camadas de conhecimento como se fosse uma cebola. Entra em conflito por restringir demais o fenômeno que, no ambiente natural, está em constante transformação e contato com o meio exterior. Esse reducionismo afasta as pessoas da realidade, fazendo-as perder a percepção da necessidade:

– Dr. tenho visto vultos, parece que me vejo fora do meu corpo.

Essa literalidade afastava este jovens de sua mente criativa antenada na multiplicidade de causas integradas à vida, diminui sua audição e sensibilidade, priorizando a agulha à costura, o raciocínio à imaginação, fazendo-os perder a visão:

–         A Joana diz que nem consegue dormir à noite, estuda todo dia até as 3h da manhã, quando lhe vem um soninho… É um xerox atrás do outro. Com a grana que o Matheus já gastou poderia ter comprado pelo menos uns dois livros por semestre, mas o que adiantaria? É o que dizem em aula que cai na prova e toda semana tem uma… Pelo menos temos um caderno legal, o da Marcinha tem tudo, até o “pum” do mestre ela anota… Tem gente que só estuda por ali e ainda vai melhor que ela nas provas… Coitada, dá pena ver o jeito dela na hora que vê suas notas. A mãe dela me falou noutro dia que agora isso virou um ritual, não consegue ter uma conversa comum com ela sem que pegue caneta e papel…

Os rituais esticam o tempo e, por isso, permitem melhor discernimento do que é dito e melhor avaliação de quem diz, mas refletem também dificuldade de compreensão, quando estranhos ao relacionamento comum, afinal, estava com sua mãe em uma conversa ordinária. São como preces ao solicitar ajuda de invisíveis. As provas também são rituais que testam nossa vocação, desafios que quando não superados, apesar de boa preparação, devem ser entendidos como sinais fechados, necessidade de mudança de rota. Destinos invisíveis podem se manifestar como fracassos visíveis.

–         Tem gente na turma fazendo promessa de subir as escadarias da igreja de Nossa Senhora da Penha, de joelhos, se conseguir se formar. É um tal de pedir para salvar a sua alma, que nem sei… “Verrugão” é o apelido do CDF da turma. Ele quis brigar comigo, noutro dia, porque eu havia me encostado nele para ver o que estava escrevendo na carteira… Acho que não precisava daquela cola, o cara só tira dez, mas era prova de farmaco e o mau não ri de si mesmo… O doutor acredita que o titular da cadeira deixou todo mundo em prova final, porque, no dia dos mestres, fizemos uma caricatura do sujeito de asas voando em direção ao céu, com a camisa do Mengão (o time dele, é claro!), recitando parábolas farmacológicas em grego, que saíam de sua boca como raios açoitando os seus alunos indefesos. Achei até uma homenagem legal pro tio. O pior é que ficou puto, pois o Fla perdeu naquela semana e quase foi pra segundona. O cara é fanático, parece que tem dupla personalidade…

O circo montado para o professor, através daquela caricatura, simboliza uma tentativa de união entre o mágico e o real, o professor e o aluno, respectivamente, a aproximação entre a convicção imperativa do domador e o medo angustiado da fera. A realidade da fera é que os alunos nada estavam entendendo sobre conceitos absolutamente inexplicáveis que, para eles, mais pareciam coelhos saindo de uma cartola.

–         Estudar, estudar, estudar!… Ler, ler, ler!… Aula, aula, mais aula!… Já não agüento mais! Isso não é vida…

A proliferação, repetição que aparece no físico como verruga, também se revela nos comportamentos fanáticos repetidos ao extremo, como nos slogans de torcidas organizadas ou propagandas vitoriosas. Albert Einstein disse uma vez que, quando se abre a mente para uma nova idéia, ela nunca mais fica do mesmo tamanho. As universidades, com sua vocação (desejo de crescimento), focam equivocadamente o físico, privilegiando a informação, em vez do metafísico – a imaginação. Vemos muito poucos mestres brincando, falando ou estimulando o absurdo, esquecendo-se de que imaginar sobre o que não se afere é ciência ousada. Einstein fala em mente não em cérebro e essa confusão parece ser a insensatez do corpo docente. O obtuso mestre na frágil escola, por fim, revelou a dicotomia entre mente e cérebro, expressa na punição exemplar da prova final, que pouco provou a não ser a incapacidade de lidar com a singularidade que agora era meu dever resgatar:

– Querida o cérebro – órgão físico – nutre-se de informação, armazena e escoa a produção, esta sim originada na imaginação, propriedade da mente, alimenta-se de “porcarias”, fortalecendo o corpo. Procure o louco, o incerto, o doce ao invés do salgado. As baladas, o desarrumado, drogas, sexo e rock in roll nem sempre fazem mal a saúde…

 

Poder: repetição; desejo: crescimento ordenado; medicamento: Thuya occidentalis.

Pesado. Sépia succus

  • “Defunto quando tem quem carrega faz peso…”
  • “Cuida deste que já tá na tábua da beirada…”

Estamos agora dentro de outra instituição milenar, quase um arquétipo das organizações e, por isso mesmo, difícil de explicar. Tudo pesa nessas instituições. Processos complicadíssimos, decisões que contrariam a sua missão, falta de comando ou de controle, mau humor do corpo de funcionários. Cheguei a ouvir certa vez:

  • “O hospital seria o melhor lugar do mundo se não houvesse pacientes…”

Refletindo o desejo de estar só, esta frase se contrapõe ao objetivo pelo qual foi criada, o de estar com o outro. Com a finalidade de diminuir o sofrimento alheio, utiliza o reducionismo como estratégia equivocada de atuação:

  • “… Não, eu estou falando do enfartado…”
  • “… Pensei que fosse da apendicite…”

O modelo único do diagnóstico reduz o sofrimento dos familiares atônitos e a percepção dos médicos pela complexidade dos doentes. A simplificação ilusória das causas autoriza o controle do comportamento pelas drogas.

  • Doutor, o paciente está vomitando!
  • Faz um antiemético nele. O que está esperando?
  • Aquele abdômen não está evoluindo bem, vou levar o paciente para a UTI.
  • Não sei o que houve, pois a cirurgia foi perfeita…

Estamos diante de um sistema não linear, no qual pequenos estímulos levam a enormes diferenças de respostas. Durante sua sobrevivência ao longo da história, essas empresas costumam carregar uma estabilidade que as melhores gestões empresariais, caracteristicamente lineares, não demonstram. Estas últimas são mais previsíveis e mais lucrativas, mas a menor falha pode não dar respostas e determinar a sua extinção, o que é impensável quando lidamos com vidas humanas. É como posicionar dominós em seqüência linear. Sabemos que, ao derrubar o primeiro, teremos sempre a mesma resposta ao final, a não ser que algum falhe por mau posicionamento ou por qualquer outra variação no ambiente ou no estímulo. Não há UTIs, by pass, que possam dar continuidade ao processo. Sairia muito caro e modificaria a lógica dos negócios: o lucro. Sistemas não lineares, os hospitais operam com inúmeras linhas de frente (front offices), caracterizados pela diversidade do atendimento com diferentes especialidades, visando à maior segurança, custam mais, pois o que está implícito é o desejo de sempre vencer. Vencer a morte ou a dor é um conceito que submete os profissionais que ali atuam.

  • Vocês viram o Carlos, agora ele está na diretoria. Internação era sinônimo de qualidade pra ele…

A perversa inadequação do tratamento é conseqüência da perversidade da cultura, que vitima também os profissionais de saúde. Acreditando em internações sem propósitos clínicos e na quantidade excessiva de exames e procedimentos solicitados sem racionalidade científica, atuam sem limitar a interferência alheia. Mas que cultura é essa? Em nosso “saber” ocidental, o sintoma é considerado algo ruim e o alívio passa por uma relação de troca com a tecnologia. Estamos vivendo a época em que a lógica é a dos sólidos, em que só a panacéia dos equipamentos são armaduras suficientes para derrotar os “inimigos naturais”: as doenças. O que é pior: a relação de afeto passa pelo presentear.

  • Doutor, não agüento mais essas dores de cabeça!
  • Fique tranqüila que faremos uns exames: tomografia, ressonância e um ultra-som de crânio para observar seus fluxos cerebrais…
  • Está bem, doutor – respondeu a paciente, mais calma.

Foi quando um estagiário que acompanhava o médico, já fora do quarto, perguntou:

  • O doutor gostaria que eu a examinasse?
  • Não é necessário, os exames vão responder as nossas perguntas, afinal, está na cara que se trata de um “petit, um peripaque”, uma histeria, melhor dizendo.

O fracasso das relações humanas estereotipadas na atitude paradoxal é o fracasso da imaginação que recorre aos modelos e aos rótulos para diagnosticar, classificar, compartimentalizar, afastar e, por fim, enterrar. A confiança só existe nos sólidos representados pelos exames que, de antemão, sabidamente nada revelariam, pois tratava-se de uma doença dinâmica, não lesional e, nem por isso, menor. Foi quando, aos gritos, ouvi um auditor da empresa cliente sair do setor de contas médicas dizendo:

  • Estão maquiando as contas. Oitenta mil reais de antibióticos que nunca foram usados! Roubam e se deixam roubar? Não é possível isso!…

A confusão das contas apresentadas era proporcional à dissimulação com que víamos exagerar a gravidade dos casos para vender a complexidade dos tratamentos, tornando-os diferentes, únicos e, por isso, essenciais àqueles que não eram capazes de ver e de conhecer. Ao investigar a sombra de seus movimentos, observávamos a necessidade de prestígio que manifestavam e seu comportamento isolacionista revelava a estratégia para se destacar.

Quando gostamos de alguém, ficamos cheios de fantasias, idéias e ansiedades. Não temos certezas, pois estas só nos distanciam. Postura soberba não permite a aproximação e o conhecimento do outro e o que não se conhece se teme, odeia-se e se quer destruir para vencer. Não mais capazes de ver o mundo afetivamente, só competitivamente, essa postura perpetuada pelo sucesso financeiro que costumam ter transforma-os em vítimas contaminadas pelo desamor e pela frieza. Não encontram o conforto que só o carinho pode dar e odeiam ser tocados. Desamor como daqueles que deixaram para trás filhos, irmãos, pais e parentes, pela incapacidade de cuidar de seus familiares, pelo fatalismo de ver a vida como uma arena romana. Mantêm uma relação interessante com o destino, confortam-se ao atribuir ao mesmo um caráter determinista, pois dessa forma não se obrigam a questionamentos.

 

 

Poder: dissimulação; desejo: vencer; medicamento: Sépia.

Excepcional ou patológico? Mercurius solubilis

  • “Atentado a bomba destrói uma quadra em Israel, matando várias pessoas”.
  • “Padres pedófilos são expulsos…”
  • “Guerra mata mais inocentes que soldados…”
  • “Narcotráfico impede prefeitura de construir em favelas…”

Foram manchetes de jornais como estas que me fizeram pensar naquilo que chama a atenção da gente: o excepcional, aquilo que excede, transborda e, por isso, é notado. Porém, hoje em dia, nem tudo que é estranho à nossa natureza é levado ao médico, como percebi em outras manchetes:

  • “Empresa do ano, pela segunda vez, responde na justiça por crime…”
  • “Estrela da música pop é envolvida com assédio a menores…”
  • “Empresário bem-sucedido é assassinado, junto com a esposa, pela filha e seu namorado…”

Retrocedi no tempo e imaginei essas pessoas antes da revelação dessas manchetes. Figuras de sucesso, excepcionais. Ao mesmo tempo, veio-me uma frase dos tempos da adolescência quando a saúde física me prometia tudo que era imaginado: cuidado com o que deseja, que você pode conseguir… Conseguir, vencer, conquistar e dominar são poderes comuns à nossa volta, quando usados em si mesmo, como vemos nos grandes atletas, são sinônimos de superação, mas, quando usados sobre o outro, transformam-se em pecado mortal, imperdoável.

Voltei-me aos meus atendimentos rotineiros. O próximo a entrar em meu consultório trajava um distinto uniforme que não conseguia esconder seu cheiro ou mesmo limitar seus movimentos desengonçados:

– Ô, “doc”…

Seu desespero aumentava enquanto procurava saídas para ele:

  • Não sei mais o que faço com esta úlcera na minha perna… Não posso mais vestir minhas botas…

Atormentado pelos meus questionamentos, invoquei-os:

– Como?

  • Não sei, começou com uma feridinha e deu no que deu…

Inquieto com o tumor ulcerado que tinha em sua perna, foi logo se protegendo em sua patente:

  • Sou capitão-tenente da OM (organização militar) de abastecimento…

Referiu-se ainda a um sonho repetido que tinha e associou o mesmo a uma noite tranqüila:

  • Ô, “doc”, só consigo descansar bem depois que mato alguém no sonho e pode ser qualquer um, basta duvidar de mim…

Somando-se a essa história, o dentista que trabalhava comigo no ambulatório havia me contado que esse paciente não cuspia no escarrador após os procedimentos. Esbravejando que isso era frescura, engolia um sem número de amálgamas de mercúrio, resíduo de algumas restaurações, como se fosse o seu rancho. Fiz o diagnóstico toxicológico. Ao sugerir o tratamento, percebi de imediato a mudança de tom em seu rosto. Quando falei em homeopatia para tratar aquele repulsivo “brocotoma” em sua perna, fez cara de enganado, tonteando imediatamente a cadeira que o apoiava… Não preciso dizer que nunca mais o vi e quase fui “pro baileu”. Alguns boatos chegaram aos meus ouvidos pelo cabo que me assistia e parece que o sujeito arrancou aquilo com uma faca… Nossa senhora!

As manchetes não saíam da minha cabeça, pensava sobre as coisas que ouvia naquele ambulatório, sobre os heróis excepcionais que, se afastando da normalidade, trouxeram anestesia, na forma de insensibilidade e destruição sobre o caráter institucional desse movimento, e, então, pude entender mais sobre nós, sobre o país, sobre os governos ditadores a quem nos submetemos. Enfim, sobre toda essa herança. Em meio ao perdão, acenou dentro de mim a resposta: o excepcional é patológico. É como o menino gênio que só sabe matemática e atribuímos a ele honras ao mérito em geografia, história e, ainda, esperamos que nos ensine inglês. Dessa forma, se comportam as instituições gigantes que só são capazes de ver aquilo que é do seu tamanho, cometendo equívocos grosseiros.

As forças armadas, assim como todos os tipos de máfias e a própria igreja, são modelos excepcionais aqui estereotipados, mas que estão presentes em diversas empresas ou grupos menores, que compartilham dessas características. São manifestações extremas de controle sobre si mesmas, quer pelas regras, pela devoção ou pela consciência, respectivamente. Como traço comum, a fidelidade é mais importante do que a coerência. Frutos do monoteísmo, na crença em um único poder, sofrem ao acreditar que este poder vem de cima: do general, do chefe ou do Papa. Trabalham com a fascinação, pois isso, é excepcional. Zelam pela unidade e usam como instrumento a obediência, engrenagem para movimentar seu corpo conforme seus pensamentos. A hierarquia e os rituais são a tônica, recorrem aos invisíveis de sua cultura e à necessidade para sustentar seu patrimônio e sua atuação. Os gigantes são conhecidos pelo raciocínio lento e concreto, pela miopia, e sua burrice adulta ameaça a imaginação da criança. Isso caracteriza estruturas rígidas, excepcionais e milenares. Porém, é por não perceberem as coisas pequenas, como os resíduos de mercúrio que adoeceram o capitão, que se curvam à destruição. Afinal, foi um pé de feijão que salvou João e uma pedrinha, a de Davi, que matou Golias.

 

 

Poder: disciplina; desejo: dominar; medicamento: Mercurius solubilis.

Pra ontem, Medohrinum

Por que os pianistas não desenvolvem LER (lesão por esforço de repetição) com a mesma freqüência que os funcionários daquela seção? Foi a pergunta que fiz àquela funcionária da central de atendimento ao cliente, CAC como era chamada. Não estou falando daqueles pianistas do Congresso Nacional, que votavam pelos seus colegas e, por isso, foram assim apelidados pela imprensa, mas dos profissionais da música. Afinal, o pianista exerce sua função de forma mais intensa que essas profissionais do teclado. Seu tempo de dedicação é muito maior, ultrapassando as seis horas por dia da jornada de trabalho dessas funcionárias. Além da repetição incansável dos acordes que o treinamento diário de um músico exige. Foi por essa janela, a de uma funcionária com as mãos endurecidas, afastada há seis meses do serviço e com ligações especiais com a diretoria, que adentrei nessa empresa de assistência médica.

  • A instabilidade lá é um negócio impressionante, gerente não pára. Já apelidaram o cargo até de suicídio sem morte”.

As decisões são todas emergenciais, estamos sempre correndo atrás de um caso complicado… A sinistralidade não pára de subir… É tudo pra ontem, doutor. Noutro dia, peguei um dos donos chorando agressivamente, diante do chefe da emergência de um dos seus maiores hospitais, dizendo que não podia mais perder dinheiro. Vi a chefia lá da CAC, de dentro de seu aquário (sala de vidro), pegar o seu sapato, colocar em cima da mesa e ameaçar uma funcionária. Eu mesmo já fiz vários relatórios, mas nada que tenha mais de uma página é lido por alguém. Não há comunicação na empresa, o que é decidido lá em cima, só ficamos sabendo na hora de “assinar a promissória”. Nunca ouvi a palavra planejamento ser colocada em prática por mais de uma dupla de funcionários. O diretor não pára na sala dele. Noutro dia, foi até engraçado, pois ele se virou subitamente como se alguém tivesse cutucado suas costas. Tem gente no setor que vive com uma sensação de areia nos olhos. Acho que é por causa dos computadores. Às vezes, exagero nos detalhes: junta um dos donos da empresa, o diretor, o gerente, o supervisor e a atendente, todos resolvendo um mesmo caso, sem se lembrar de decisões anteriores de sucesso ou de processos previamente elencados. Parece que todo mundo chegou ontem à empresa. Ególatras machistas, mulher lá só tem vez quando fala e age como homem.

Conforme contava sua história, lembrava-me de uma lenda africana sobre uma frágil menina que queria se transformar numa guerreira poderosa e, para isso, saiu de casa muito jovem para capturar o feiticeiro que comia os homens de sua tribo, escravizando as mulheres que não paravam de trabalhar para atender aos seus caprichos. Esses não eram poucos e mudavam a todo o momento sem propósito. O que viesse a sua cabeça, aquilo que pudesse colocar em movimento, era a opção do momento que tinha para exercer seu poder e não sentir a dor. Continuei a ouvi-la:

  • Sabe, doutor, acabei me envolvendo afetivamente com um dos poderosos lá de dentro, o mais temido, por sinal, e o mais agitado. Está sempre de cara feia. Que mau humor!
  • Mas o que te atraiu nele? – sussurrei.
  • Mas isso é só de dia, à noite, ele é outra pessoa. Muito mais alegre.

A dor a que me refiro, na lenda, era de um espinho envenenado que se posicionava no dorso daquele malfeitor, colocado lá por membros da tribo como provação de coragem. Ninguém sabia mais disso naquela região, a não ser por um velho ancião, que já nem mais pertencia ao grupo encontrado por aquela menina, em sua peregrinação.

  • Já não sei como ajudar mais, ele é casado e não dá conta nem de seus quatro filhos, quanto mais de mim. Tenho é que me afastar dele, pois sinto-me culpada.

Foi então que me peguei aconselhando como o velho fez, na lenda, com a menina:

  • Tire o espinho envenenado.

Lançou-me um olhar surpreso, mas, após contar-lhe a história, retrucou:

  • Impossível, ele não deixa a gente se aproximar tanto assim, parece que anda encostado na parede, com o olhar para todos os lados.

Segui, então, com a explicação do velho:

  • É porque a dor a que foi submetido para a colocação do cravo envenenado foi tão grande que não permitiria a sua retirada, pois a sentiria novamente temendo a loucura. Por isso, é tão agitado para não abrir um flanco em sua retaguarda.

No conto, a jovem que queria ser respeitada um dia, uma guerreira, conseguiu tirar o espinho envenenado do feiticeiro. Os primeiros sinais manifestaram-se na natureza que retomou o ciclo da vida, a começar pela primavera, depois pelo verão, pelo outono e, finalmente, pelo inverno, trazendo para a região a estabilidade das estações do ano, antes açoitadas por incessante ventania. Seu tamanho diminuto, da menina, a ajudou a chegar ao espinho com mais facilidade, sem ser percebida pelo feiticeiro, assim como a paciente que pelo afeto operou sua alquimia, trazendo seu amor a uma consulta. Da mesma forma, fazem os transformadores de cultura numa organização: entram no jogo, aproximam-se do poder e, com um olhar submisso, tornam-se pequenos até ter o tamanho de um afeto, dessa maneira, penetram no coração da empresa, mudando os seus rumos para sempre. Conforme se submetia ao tratamento, deixava de lado o poder de submeter os outros ao seu momento, ao seu tempo. Senhor da tempestade, poder este que impedia a construção de uma empresa melhor, mais do que ninguém só desejava no início o prazer, mas na pressa só fazia ventar e nada construir.

Assim como o feiticeiro, não engolia ou matava os homens da tribo ou demitia os trabalhadores honestos, apenas os transformava em objetos obedientes. Deixava que acreditassem nisso, pois isso multiplicava o seu poder. Depois de curado, esvaziado de seu egoísmo e em vias de demitir-se, pois já não fazia o perfil da empresa, noticiou-me o encontro do verdadeiro amor: trazendo um convite de casamento com aquela que, agora já mexendo com destreza suas mãos, sorria ao seu lado. Tanto na lenda como nesta história, observamos a transformação da menina em mulher, do feiticeiro em doutor e deste doutor aqui, que vos fala, em aprendiz, pois perguntei novamente e, desta vez com resposta, por que os pianistas desenvolvem menos LER que as meninas do serviço de atendimento?

– Sabe, doutor, nós, atendentes, ao teclar as queixas emergentes e desamparadas do nosso cliente, as sentimos como se fossem nossas, por isso adoecemos, já o pianista, bem, só ouve a voz do seu coração.

 

 

Poder: mudança pelo tempo; desejo: crescimento desordenado; medicamento: Medohrrinum.