Pra ontem, Medohrinum

Por que os pianistas não desenvolvem LER (lesão por esforço de repetição) com a mesma freqüência que os funcionários daquela seção? Foi a pergunta que fiz àquela funcionária da central de atendimento ao cliente, CAC como era chamada. Não estou falando daqueles pianistas do Congresso Nacional, que votavam pelos seus colegas e, por isso, foram assim apelidados pela imprensa, mas dos profissionais da música. Afinal, o pianista exerce sua função de forma mais intensa que essas profissionais do teclado. Seu tempo de dedicação é muito maior, ultrapassando as seis horas por dia da jornada de trabalho dessas funcionárias. Além da repetição incansável dos acordes que o treinamento diário de um músico exige. Foi por essa janela, a de uma funcionária com as mãos endurecidas, afastada há seis meses do serviço e com ligações especiais com a diretoria, que adentrei nessa empresa de assistência médica.

  • A instabilidade lá é um negócio impressionante, gerente não pára. Já apelidaram o cargo até de suicídio sem morte”.

As decisões são todas emergenciais, estamos sempre correndo atrás de um caso complicado… A sinistralidade não pára de subir… É tudo pra ontem, doutor. Noutro dia, peguei um dos donos chorando agressivamente, diante do chefe da emergência de um dos seus maiores hospitais, dizendo que não podia mais perder dinheiro. Vi a chefia lá da CAC, de dentro de seu aquário (sala de vidro), pegar o seu sapato, colocar em cima da mesa e ameaçar uma funcionária. Eu mesmo já fiz vários relatórios, mas nada que tenha mais de uma página é lido por alguém. Não há comunicação na empresa, o que é decidido lá em cima, só ficamos sabendo na hora de “assinar a promissória”. Nunca ouvi a palavra planejamento ser colocada em prática por mais de uma dupla de funcionários. O diretor não pára na sala dele. Noutro dia, foi até engraçado, pois ele se virou subitamente como se alguém tivesse cutucado suas costas. Tem gente no setor que vive com uma sensação de areia nos olhos. Acho que é por causa dos computadores. Às vezes, exagero nos detalhes: junta um dos donos da empresa, o diretor, o gerente, o supervisor e a atendente, todos resolvendo um mesmo caso, sem se lembrar de decisões anteriores de sucesso ou de processos previamente elencados. Parece que todo mundo chegou ontem à empresa. Ególatras machistas, mulher lá só tem vez quando fala e age como homem.

Conforme contava sua história, lembrava-me de uma lenda africana sobre uma frágil menina que queria se transformar numa guerreira poderosa e, para isso, saiu de casa muito jovem para capturar o feiticeiro que comia os homens de sua tribo, escravizando as mulheres que não paravam de trabalhar para atender aos seus caprichos. Esses não eram poucos e mudavam a todo o momento sem propósito. O que viesse a sua cabeça, aquilo que pudesse colocar em movimento, era a opção do momento que tinha para exercer seu poder e não sentir a dor. Continuei a ouvi-la:

  • Sabe, doutor, acabei me envolvendo afetivamente com um dos poderosos lá de dentro, o mais temido, por sinal, e o mais agitado. Está sempre de cara feia. Que mau humor!
  • Mas o que te atraiu nele? – sussurrei.
  • Mas isso é só de dia, à noite, ele é outra pessoa. Muito mais alegre.

A dor a que me refiro, na lenda, era de um espinho envenenado que se posicionava no dorso daquele malfeitor, colocado lá por membros da tribo como provação de coragem. Ninguém sabia mais disso naquela região, a não ser por um velho ancião, que já nem mais pertencia ao grupo encontrado por aquela menina, em sua peregrinação.

  • Já não sei como ajudar mais, ele é casado e não dá conta nem de seus quatro filhos, quanto mais de mim. Tenho é que me afastar dele, pois sinto-me culpada.

Foi então que me peguei aconselhando como o velho fez, na lenda, com a menina:

  • Tire o espinho envenenado.

Lançou-me um olhar surpreso, mas, após contar-lhe a história, retrucou:

  • Impossível, ele não deixa a gente se aproximar tanto assim, parece que anda encostado na parede, com o olhar para todos os lados.

Segui, então, com a explicação do velho:

  • É porque a dor a que foi submetido para a colocação do cravo envenenado foi tão grande que não permitiria a sua retirada, pois a sentiria novamente temendo a loucura. Por isso, é tão agitado para não abrir um flanco em sua retaguarda.

No conto, a jovem que queria ser respeitada um dia, uma guerreira, conseguiu tirar o espinho envenenado do feiticeiro. Os primeiros sinais manifestaram-se na natureza que retomou o ciclo da vida, a começar pela primavera, depois pelo verão, pelo outono e, finalmente, pelo inverno, trazendo para a região a estabilidade das estações do ano, antes açoitadas por incessante ventania. Seu tamanho diminuto, da menina, a ajudou a chegar ao espinho com mais facilidade, sem ser percebida pelo feiticeiro, assim como a paciente que pelo afeto operou sua alquimia, trazendo seu amor a uma consulta. Da mesma forma, fazem os transformadores de cultura numa organização: entram no jogo, aproximam-se do poder e, com um olhar submisso, tornam-se pequenos até ter o tamanho de um afeto, dessa maneira, penetram no coração da empresa, mudando os seus rumos para sempre. Conforme se submetia ao tratamento, deixava de lado o poder de submeter os outros ao seu momento, ao seu tempo. Senhor da tempestade, poder este que impedia a construção de uma empresa melhor, mais do que ninguém só desejava no início o prazer, mas na pressa só fazia ventar e nada construir.

Assim como o feiticeiro, não engolia ou matava os homens da tribo ou demitia os trabalhadores honestos, apenas os transformava em objetos obedientes. Deixava que acreditassem nisso, pois isso multiplicava o seu poder. Depois de curado, esvaziado de seu egoísmo e em vias de demitir-se, pois já não fazia o perfil da empresa, noticiou-me o encontro do verdadeiro amor: trazendo um convite de casamento com aquela que, agora já mexendo com destreza suas mãos, sorria ao seu lado. Tanto na lenda como nesta história, observamos a transformação da menina em mulher, do feiticeiro em doutor e deste doutor aqui, que vos fala, em aprendiz, pois perguntei novamente e, desta vez com resposta, por que os pianistas desenvolvem menos LER que as meninas do serviço de atendimento?

– Sabe, doutor, nós, atendentes, ao teclar as queixas emergentes e desamparadas do nosso cliente, as sentimos como se fossem nossas, por isso adoecemos, já o pianista, bem, só ouve a voz do seu coração.

 

 

Poder: mudança pelo tempo; desejo: crescimento desordenado; medicamento: Medohrrinum.

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